19 dezembro 2007

A Justiça Criminosa

Não resisto a citar a minha amiga Clara Ferreira Alves, que em boa hora resolveu deixar a advocacia para se dedicar à Cultura:

«Por uma vez gostava que em Portugal alguma coisa tivesse um fim, ponto final, assunto arrumado. Não se fala mais nisso.
Vivemos no país mais inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir nada.
Desde os Templários e as obras de Santa Engrácia que se sabe que nada acaba em Portugal, nada é levado às últimas consequências, nada é definitivo e tudo é improvisado, temporário, desenrascado.
Da morte de Francisco Sá Carneiro e do eterno mistério que a rodeia, foi crime, não foi crime, ao desaparecimento de Madeleine McCann ou ao caso Casa Pia, sabemos de antemão que nunca saberemos o fim destas histórias, nem o que verdadeiramente se passou nem quem são os criminosos ou quantos crimes houve.
Tudo a que temos direito são informações caídas a conta-gotas, pedaços do enigma, peças do quebra-cabeças. E habituámo-nos a prescindir de apurar a verdade porque intimamente achamos que não saber o final da história é uma coisa normal em Portugal e que este é um país onde as coisas importantes são "abafadas", como se vivêssemos ainda em ditadura.
E os novos códigos Penal e de Processo Penal em nada vão mudar este estado de coisas. Apesar dos jornais e das televisões, dos blogues, dos computadores e da Internet, apesar de termos acesso em tempo real ao maior número de notícias de sempre, continuamos sem saber nada, e esperando nunca vir a saber com toda a naturalidade.
Do caso Portucale à Operação Furacão, da compra dos submarinos às escutas ao primeiro-ministro, do caso da Universidade Independente ao caso da Universidade Moderna, do Futebol Clube do Porto ao Sport Lisboa Benfica, da corrupção dos árbitros à corrupção dos autarcas, de Fátima Felgueiras a Isaltino Morais, da Braga parques ao grande empresário Bibi, das queixas tardias de Catalina Pestana às de João Cravinho, há por aí alguém que acredite que algum destes secretos arquivos e seus possíveis e alegados, muito alegados crimes, acabem por ser investigados, julgados e devidamente punidos?
Vale e Azevedo pagou por todos.
Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com isso apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do encobrimento, do compadrio e da corrupção.
Os portugueses, na sua infinita e pacata desordem existencial, acham tudo "normal" e encolhem os ombros.
Quem se lembra dos doentes infectados por acidente e negligência de Leonor Beleza com o vírus da sida?
Quem se lembra do miúdo electrocutado no semáforo e do outro afogado num parque aquático?
Quem se lembra das crianças assassinadas na Madeira e do mistério dos crimes imputados ao padre Frederico?
Quem se lembra que um dos raros condenados em Portugal, o mesmo padre Frederico, acabou a passear no Calçadão de Copacabana?
Quem se lembra do autarca alentejano queimado no seu carro e cuja cabeça foi roubada do Instituto de Medicina Legal?
Em todos estes casos, e muitos outros, menos falados e tão sombrios e enrodilhados como estes, a verdade a que tivemos direito foi nenhuma.
No caso McCann, cujos desenvolvimentos vão do escabroso ao incrível, alguém acredita que se venha a descobrir o corpo da criança ou a condenar alguém? As últimas notícias dizem que Gerry McCann não seria pai biológico da criança, contribuindo para a confusão desta investigação em que a Polícia espalha rumores e indícios que não substancia.
E a miúda desaparecida em Figueira? O que lhe aconteceu?
E todas as crianças desaparecida antes delas, quem as procurou?
E o processo do Parque, onde tantos clientes buscavam prostitutos, alguns menores, onde tanta gente"importante" estava envolvida, o que aconteceu?
Arranjou-se um bode expiatório, foi o que aconteceu.
E as famosas fotografias de Teresa Costa Macedo? Aquelas em que ela reconheceu imensa gente "importante", jogadores de futebol, milionários, políticos, onde estão? Foram destruídas? Quem as destruiu e porquê?
E os crimes de evasão fiscal de Artur Albarran mais os negócios escuros do grupo Carlyle do senhor Carlucci em Portugal, onde é que isso pára?
O mesmo grupo Carlyle onde labora o ex-ministro Martins da Cruz, apeado por causa de um pequeno crime sem importância, o da cunha para a sua filha.
E aquele médico do Hospital de Santa Maria suspeito de ter assassinado doentes por negligência? Exerce medicina?
E os que sobram e todos os dias vão praticando os seus crimes de colarinho branco sabendo que a justiça portuguesa não é apenas cega, é surda, muda, coxa e marreca.
Passado o prazo da intriga e do sensacionalismo, todos estes casos são arquivados nas gavetas das nossas consciências e condenados ao esquecimento. Ninguém quer saber a verdade. Ou, pelo menos, tentar saber a verdade.
Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as redes e os "senhores importantes" que abusaram, abusam e abusarão de crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre meninas ficaram sempre na sombra.
Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade. Este é o maior fracasso da democracia portuguesa e contra isto o PS e o PSD que fizeram? Assinaram um iníquo pacto de justiça. »


«Pluma Caprichosa» - «Expresso» de 20 de Outubro de 2007 - c.a.a.

04 dezembro 2007

A crise da Ordem

Propositadamente, mantive um silêncio profundo enquanto durou a campanha eleitoral da Ordem dos Advogados.
Parece-me que, tal como a Justiça, a Ordem está literalmente falida e não acredito que alguém consiga devolvê-la à Dignidade.
Votei por vício - não por convicção. Mas a verdade é que nenhum dos candidatos me convenceu.
Não posso deixar de citar, para memória futura, o excelente texto do Dr. Gil Teixeira na Forlegis:
«Começa a fazer-se tarde, tenho a caixa dos pirolitos um pedacinho avariada, mas não queria deixar passar o momento do rescaldo das eleições da Ordem dos Advogados em branco, if not ainda se pensa que tenho pinta de mau perdedor because o bastão da dita não foi entregue ao Companheiro António Garcia Pereira. Sabe-se que não é este o modelo que defendo para a Ordem dos advogados, falta-lhe a representatividade da soberania popular, o verdadeiro garante da democracia, completamente estranho à sua democraticidade e organização internas, agravada ainda pelo facto de ali se praticar uma justiça “caseira”. Penso que não vale a pena pôr mais no romance, mas até hoje, os discordantes, ainda não conseguiram apresentar provas de facto de que as Ordens são entes jurídicos verdadeiramente democráticos, exogenamente (este palavrão é um bocado abstruso). Defender o contrário, como sempre tenho dito, é como defender que o Governo, melhor o povo, não precisa do Parlamento, a verdadeira e única fonte da soberania popular.

As Ordens são entes jurídicos onde tudo se passa intra-muros e sem a intervenção, e controle, de qualquer representante do poder soberano, no fundo agem sem contra-poderes, e sem a legitimação popular. Paradoxalmente as Ordens são penduricalhos do Estado. Vivem porque o Estado lhes dá vida em decreto e as deixa viver, mas sempre sob o comando e as instruções do Governo, abençoadas ao de leve pelo Parlamento. Veja-se por exemplo, a estrutura e a orgânica actual dos Conselhos Superiores de Magistratura. Portanto, as Ordens, repito pela enésima vez, são instituições que estão feridas de profunda inconstitucionalidade material. Simplificando, são inconstitucionais.

Todavia, andando para a frente, passe a mariquice que o nosso Companheiro José Madeira Amorim, o grande chefe de Marrocos de cima, e mandando às urtigas o protocolo, começo por saudar, e agradecer, a participação de todos os Colegas candidatos que o tenham feito imbuídos do melhor espírito, o serviço público em favor da associação. Como se sabe, onde está o bicho humano, há sempre a feira das vaidades, o prego na lapela, a cartola, o crachá, o emblema, o brinquinho na asa do nariz, e demais apetrechos usados pelos pavões. A meu ver, houve apenas um derrotado, o Colega Magalhães da Silva, talvez não tanto por demérito do Colega, mas por representar, ou ser aparentado, com “o sistema”, leia-se as forças do Governo. Assim, houve três vencedores, os Colegas, pela ordem, Marinho Pinto, Menezes Leitão e Garcia Pereira, e não me refiro a vitórias morais ou políticas.

Em relação a Marinho Pinto diria que foi triplamente vencedor, venceu as anteriores eleições a nível nacional, e venceu estas duas vezes, a soma dos seus votos anda perto ou ultrapassa a metade dos restantes, ainda não fiz as contas, mas isso não é relevante. Chamaram-lhe, ou apelidaram-no de “chefe dos descamisados”. Se isso for verdade temos de concluir que a Ordem, melhor, os advogados, têm de mudar de farda, em vez da toga os advogados deverão passar a envergar camisa e calças sem gravata, ou quiçá fato-macaco. A votação no Colega António Marinho revela um quadro, ou um cenário na advocacia que não pode ser ignorado. O rei, finalmente, veio para a rua descascado, perdão, em trajos menores, perdão de tanga, perdão, nuzinho.

Sem que a tanto estivesse obrigado, afirmo que não votei, e nunca tive qualquer contacto pessoal com o Colega Marinho Pinto, mas tenho o maior respeito por todos os Colegas que tiveram a coragem de o fazer, revelando com isso a face oculta da advocacia actual em Portugal. Marinho Pinto tem uma pena de grande qualidade, melhor que a oralidade, e não podendo fazer muito em matéria da “orgânica” da Ordem tem os media como plateau, e aqui pode ser um interveniente incómodo, querendo, para o Governo e outras forças instaladas em redor do Poder. O mandato é sempre curto ou demasiado comprido, e daqui a três anos vamos saber se nos soube a pouco ou nos matou a fome, ou se nos deixou com a água na boca. Tem algumas condições para fazer um bom governo, mas precisa do apoio de todos, e aqui a porca pode torcer o rabo. Há muitas quintas e quintais, e hortas, e herdades, e jeiras, e desconhecemos os dotes do Colega Marinho Pinto para a agricultura e horticultura. Fazemos votos, no entanto, que faça um mandato que se exige a um bastonário que use o bastão com inteligência, descomprometido, interventivo, inconformista, e em defesa dos direitos dos cidadãos, e da Justiça, e dos seus operadores.


Depois, o Colega Menezes Leitão também averbou uma vitória, sendo relativa, é verdade, mas “lutava” contra “o governo”, entenda-se Magalhães da Silva, e a outra metade cuja representatividade era garantida pelos outros candidatos. Essa vitória “menor” justifica a qualidade e a força do candidato e Colega Menezes Leitão no seio da Ordem dos advogados e como tal não pode ser ignorada pelo candidato vencedor.

Pessoalmente, não tenho pontaria para a eleição dos bastonários, e voto sempre nos candidatos das minorias. Penso que nunca elegi um bastonário. Seja como for sempre direi que o Colega António Garcia Pereira também foi um vencedor. Vozes mais iluminadas têm dito que se trata do “eterno candidato”. Ora bem, oxalá, como dizem os marroquinos donde provenho, o Colega Garcia Pereira seja o eterno candidato por muitos e longos anos. António Garcia Pereira é um visionário e como tal tem um relógio com um calendário diferente daquele que me foi oferecido pela minha querida mãe quando fiz quinze anos. É norma que os visionários façam sempre parte das minorias, e seria muito complicado se as maiores passassem a ter visões. O Colega Garcia Pereira é um cidadão eleito, e portanto não precisa das urnas para que se lhe reconheça esse estatuto. O Colega Garcia Pereira não “o Zé que faz falta”, mas o cidadão que a sociedade precisa. Garcia Pereira é um expoente da democracia e esse é o maior bem da humanidade. Por isso Garcia Pereira é sempre vencedor em quaisquer eleições.

Finalizando, uma palavra breve para o Conselho Superior. Discordo da alegada leitura que se faz em relação à votação no Conselho Superior, sendo maior do que a do Colega Marinho Pinto, significando maior legitimidade do que o bastonário eleito. Da minha banda votei no Conselho Superior eleito seguindo a lógica do anti-poder. Um Bastonário e um Conselho Superior independentes e fortes fortalecem a Ordem. Todavia, não despromovo primeiro, mesmo que a diferença de votos fosse substancial, em prejuizo do bastonário. O bastonário ainda é o dono do bastão, e o Conselho Superior é um orgão interno da Ordem, o tribunal, segundo se diz, mas cujo estatuto ainda não consta na constituição, penso.

Concluindo de vez, com toda a mariquice, endereço daqui os meus parabéns ao Colega Marinho Pinto, e que tenha o maior sucesso à frente dos destinos da Ordem dos advogados.»