28 novembro 2009

Da barbaridade do segredo de justiça

Há muitos anos que defendo a eliminação pura e simples do segredo de justiça.

Defendi-a nos tempos em que era jornalista e me cabia, pelo menos uma vez por semana, a missão de «fazer a Judiciária», que consistia em comparecer no briefing diário da Polícia, receber um relatório de eventos policiais, cientificamente filtrados e procurar saber mais, se possível para gerar uma «cacha».

Essa minha experiência ocorreu depois de ter feito um curso de formação no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, poucos meses depois do 25 de Abril, onde um prestigiado jornalista, Dominique Pons, nos fez, um dia uma excelente preleção sobre informação policial e nos ensinou algumas técnicas para, a partir da manipulação informativa dos serviços policiais, cumprirmos o essencial do código deontológico dos jornalistas, que consiste na produção de informação rigorosa e completa, a benefício do direito dos cidadãos à informação e no respeito pelos direitos individuais.

Lembro-me, como se fosse hoje, da essência do discurso do Dominique, passados que são trinta e cinco anos. Resumo-a nos seguintes pontos:

1. As corporações, nomeadamente as polícias, têm interesses próprios e um desses interesses consiste em procurar transmitir à opinião pública uma imagem de eficácia corporativa.

2. Essa imagem de eficácia que as polícias procuram transmitir é, por regra, atentória dos direitos individuais das pessoas visadas. As polícias procuram fechar os dossiers com glória antes mesmo dos julgamentos; e, por isso, estão sempre interessadas em condicionar os tribunais por via da opinião pública, porque a condenação é, ela mesma, a prova da sua eficácia e a absolvição a prova do seu fracasso ou do seu abuso.

3. Numa sociedade mediatizada, o réu já chega condenado ao tribunal, porque foi colocado na posição de cabeça de cartaz mas, com alguma crueldade, ele não pode participar na ação mediática que o envolve.

4. O ideal seria que os jornalistas pudessem aceder a todas as fontes. Produzindo informação rigorosa, eles ajudariam os tribunais a reduzir o estresse causado pelo marketing judiciário, melhorando a qualidade da justiça. Não sendo isso possível, porque existe nas nossas jurisdições essa barbaridade do segredo de justiça, o mínimo que se exige dos jornalistas é que questionem os polícias e que questionem a própria opinião pública, suscitando todas as dúvidas que cada casão justificar.

Fiz alguns amigos nessas minhas visitas à Judiciária na qualidade de jornalista, mas não esqueço nem o incómodo com que era vista a minha presença nem o alívio que esses amigos sentiram quando deixei de fazer esse serviço.

Tenho a ideia de que, durante longos anos, os relatórios que as polícias forneciam aos jornalistas eram tratados como uma coisa mais ou menos sagrada, ao ponto de muitos jornais de referência nem sequer mandarem jornalistas aos briefings, pagando uma avença ao homem da Arcada , que, diariamente recolhia os relatórios das policias e dos hospitais e os entregava nas redações.

E lembro-me de que as perguntas que eu fazia nos briefings eram tomadas, sobretudo no princípio, como autênticas heresias, a que algumas vezes era dada uma resposta provocatória do tipo: «Mas o senhor jornalista quer pôr em causa a seriedade da polícia?»

Eu tinha acabado o meu curso de direito uns tempos atrás e isto chocava-me profundamente, porque abalava uma série de princípios em que eu acreditava, mas sobretudo porque naquele curso de Paris nos acordaram para a problemática das lesões que podem ser causadas pela comunicação social na vida dos cidadãos.

O caso mais escandaloso de manipulação policial que conheci foi o que destruiu a imagem e liquidou a carreira política de Edmundo Pedro, quando ele recolhia as armas distribuídas no 25 de Novembro para as devolver ao Exército, tendo sido injetada na comunicação social a notícia de que fora preso num processo em que se misturavam armas com contrabando. Veio a verificar-se mais tarde que era tudo mentira.

Tudo isto porque nós, jornalistas, mesmo que tivéssemos fortes indícios, ou quase certezas de que aquelas informações eram falsas ou, pelo menos, pouco rigorosas, não as podíamos confirmar verificando os processos de que emanavam.

Tanto no que se refere à justiça como à política, fui eu próprio vitima de informação manipulada pelas fontes e acho que esse é um dos maiores dramas de qualquer jornalista. A fonte é credível, a informação é documentada, podendo embora não ser toda a informação. O que fazer, quando certo que uma das regras da imprensa de informação geral consiste em difundir tudo o que seja socialmente relevante?

Um belo dia um membro do Conselho da Revolução entregou-me cópia de uma ata em que se dizia que o general X não seria nomeado diretor da Academia Militar porque tinha sido informador da PIDE. O homem já tinha sido penalizado (porque foi decidido não o nomear) e era para mim duvidoso o interesse da notícia, que me parecia destinada, apenas, a denegrir a imagem do cavalheiro. Mas o meu chefe de redação, o saudoso Artur Alpedrinha exigiu que a notícia se fizesse, porque era uma cacha: «Então tu tens uma chacha dessas, dada por um conselheiro da revolução e não queres publicar? És tolinho ou quê?...»

Uns anos mais tarde, já tinha abandonado o jornalismo, defendi o jornalista Albino Ribeiro Cardoso num processo crime que lhe foi movido por Duarte Lima, por causa de uns escritos no «Tal & Qual» que liquidaram a carreira daquele político, porque estavam extremamente bem documentados. Rigorosamente o mesmo drama; o jornalista tinha recebido, de um alto responsável, pessoa da maior credibilidade que era companheiro de partido de Duarte Lima, um dossier absolutamente comprometedor, que não podia ficar escondido, ainda à partida pudessem avaliar-se as suas consequências. Quando, mais tarde, tivemos a oportunidade de analisar o processo que continha esses documentos, concluímos que era apenas uma parte dos documentos, razão porque aquilo que, na altura foi um escândalo, tivesse ficado em águas de bacalhau. Mas o político Duarte Lima foi destruído, porque o jornalista viu impedida a sua investigação pelo famigerado segredo de justiça.

Quando passei a exercer a advocacia apercebi-me do verdadeiro sentido e alcance do segredo de justiça. Na maior parte dos casos com impacto mediático em que participei como advogado, quando esperava encontrar peças bombásticas nos processos, verifiquei que as montanhas pariram ratos.

Muito cedo cheguei à conclusão que o segredo de justiça não tem nenhuma utilidade para a investigação e que, bem pelo contrário, serve apenas para facilitar a negligência investigatória e permitir exercícios de puzzling, geralmente de tão má qualidade que acabam, depois, por ser desmascarados nos julgamentos.

Tenho, para mim, a convicção de que a investigação jornalística é, por regra, muito mais séria do que a investigação policial e que isso não decorre da maior seriedade dos jornalistas por relação aos polícias mas do simples facto de os jornalistas, trabalhando embora sob pressão maior do que a dos polícias, serem mais facilmente desmascarados e, sobretudo, responsabilizados.

Um jornalista que acuse alguém da prática de um crime que esse alguém não cometeu está, à partida, condenado a indemnizar, se o lesado propuser contra ele a devida ação judicial. Mas se um polícia ou um agente do Ministério Público acusar alguém da prática de um crime que não cometeu, destruindo completamente a vida dessa pessoa, sem que tenha fundamento sério para deduzir a acusação, não acontece nada, porque é praticamente impossível obter a sua condenação.

É muito frequente constatar, em processos muito mediatizados, que no momento em que foram soltas determinadas notícias, elas não tinham o mínimo fundamento e que, nalguns casos, foram meras construções de comunicação, adequadas a condicionar depoimentos futuros.

A verdade é que nunca se encarou este problema a sério, pela simples razão de que há interesses antinómicos entre a justiça e a comunicação social. Enquanto esta última sempre viveu e continua a viver da notícia, que é o espelho do dia a dia, morrendo as notícias no próprio dia em que nascem, a justiça trabalha a prazo, produzindo as suas mensagens próprias num momento em que a notícia já morreu, mas condicionou, de forma geralmente irremediável e quase sempre parcial, a memória coletiva.

Penso que o fim – absoluto e total – do segredo de justiça beneficiaria a própria justiça e a comunicação social. E nem sequer há hoje razões técnicas que justifiquem a manutenção do segredo. Tudo pode ser facilmente editado na Internet, de forma a que seja visível por todos os da cidade, sem que com isso perca qualidade a investigação. Bem pelo contrário.

Beneficiaria a justiça, porque a factologia em investigação seria questionada de forma muito mais viva a rigorosa pela comunicação social, perspetivando-se quadros mais amplos de conhecimento, de que só beneficiaria a verdade. Beneficiaria a comunicação social, porque ganharia credibilidade, deixando de ser aquilo em que se transformou hoje: um lençol promíscuo onde o marketing judiciário lança, de forma absolutamente filtrada o que lhe convém.

O argumento de que a completa transparência prejudicaria a descoberta da verdade é um argumento completamente falacioso, porque, como é sabido nenhum depoimento vale para além da acusação e todos eles (desde os dos arguidos até aos das testemunhas) só têm eficácia para suportar o juízo final se forem produzidos em sede de julgamento público.

O que temos hoje é um sistema absolutamente selvagem, que degrada tanto a justiça como a comunicação social. A justiça porque perde toda a credibilidade quando se demonstra, em boa parte dos casos, que afinal era tudo mentira ou, pelo menos, o trabalho de base, que é o da investigação estava tão mal feito que os próprios tribunais concluíram não haver fundamento para incriminação. A comunicação social porque, não podendo esconder o que é noticia, é usada para destruir pessoas a quem, por causa do dito segredo, é recusado, inclusivamente o direito de resposta.

Esse é, talvez, o aspeto mais bárbaro do quadro. As televisões repisam de meia em meia hora a notícia de que A ou B cometeram um crime, os jornais publicam-lhe as fotografias e todos os detalhes que se «soltam» dos processos e os visados não podem responder pelas mesmas vias, porque tal é impedido pelas normas reguladoras do segredo.

Só quem não percebe os mecanismos mais elementares da comunicação de massas pode ficar indiferente a esta barbaridade que consiste em um cidadão ser acusado hora a hora na praça pública e não poder defender-se nela, desmentindo, esclarecendo, levando para a praça pública dados que contradigam as mensagens negativas com que o massacram.

O segredo de justiça funciona, nesse quadro, como um mecanismo de absoluta denegação do direito de defesa, neste outro canal que, por regra é muito mais importante do que o da justiça. É que na justiça ainda é possível a um sujeito defender-se, em conformidade com os seus próprios ritos. Mas as regras da comunicação são outras e ou é reconhecido ao sujeito o direito de se defender imediatamente e sem nenhumas limitações ou ele sofrerá danos irreparáveis, acabando por ser condenado pela opinião pública, de forma irreversível.

Isto é especialmente grave porque é impossível chegar alguma vez a descobrir onde está a face oculta da justiça e que interesses estão por detrás dela. Na verdade, o que todos sabemos, da experiência de anos, é que o segredo de justiça está na lei mas há como uma mão invisível, de alguém com face oculta, que aproveita esse segredo para manipular a comunicação social, em termos cada vez mais sofisticados.

14 novembro 2009

Começaram a comer-se uns aos outros...

Parece que os da justiça começaram a comer-se uns aos outros.
Até agora tudo o que foi disponibilizado para os jornais procurava criar na opinião pública a ideia de que há um polvo político a minar o país.
Pela primeira vez surge uma insinuação direta de que há juizes metidos nas mesmas maroscas.
Por cada um que sair ou for desclassificado, há outro à espera de subir.
Alguém ganha sempre alguma coisa com a destruição de que lhe está acima.

Cito o Público:

Uma das certidões extraídas pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro, no âmbito do processo Face Oculta, pretende esclarecer como é que o empresário Manuel José Godinho soube antecipadamente do resultado de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que absolveu uma das suas empresas, a O2 - Tratamentos e Limpezas Ambientais, SA. A Procuradoria-Geral da República recebeu a certidão (cópias de certas partes de um inquérito que não estão relacionadas directamente com o objecto da investigação) no final de Outubro e deverá remetê-la para os serviços do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, já que o caso envolve juízes desembargadores.
Os mandados do processo Face Oculta referem uma escuta telefónica de 5 de Junho deste ano, entre Manuel José Godinho, presidente da empresa O2 e o vice-presidente do BCP, Armando Vara, que suspendeu funções após ter sido constituído arguido neste processo.
Nesta intercepção, Godinho comunica a Vara que ganhou a acção contra a Refer no Tribunal da Relação, respondendo-lhe Vara que seria melhor esperar pelo conhecimento público da decisão para começarem a agir.
A conversa aconteceu quatro dias antes de o acórdão ter sido assinado por três juízes desembargadores, a 9 de Junho. Esta decisão revogou a sentença do Tribunal de Macedo de Cavaleiros, de 17 de Dezembro, que condenou a O2 a pagar 105 mil euros à Refer por ter levantado sem autorização milhares de metros de carris da Linha do Tua, um caso que ficou conhecido como Carril Dourado. A prescrição esteve na base da decisão da Relação do Porto, que considerou que quando a Refer - Rede Ferroviária Nacional recorreu a tribunal já tinha prescrito o direito de ser ressarcida.
A normalização das relações comerciais com a Refer, que terá sido o principal fornecedor da O2 entre 2004 e 2006, é uma preocupação constante de Godinho ao longo dos vários meses em que foi escutado.O semanário Sol adianta que o empresário das sucatas sabia que vencera na Relação do Porto 15 dias antes da decisão ser tornada pública. Isto porque Manuel José Godinho terá contactado um dos vários advogados que acompanharam o caso anunciando-lhe que prescindia dos seus serviços, uma vez que já sabia que a decisão da Relação lhe era favorável.
A conversa terá ocorrido 15 dias antes da assinatura do acórdão. Questionado pelo PÚBLICO sobre se alguma das certidões do processo Face Oculta envolvia suspeitas sobre magistrados judiciais, a Procuradoria-Geral da República nada respondeu. Segundo explicou ao PÚBLICO um magistrado do STJ, normalmente todos os anos são abertos entre duas e três dezenas de inquéritos que têm como alvo juízes desembargadores ou procuradores-gerais adjuntos. A grande maioria tem por base queixas-crime de cidadãos e só raramente estes resultam em acusações formais.
Ontem à tarde o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, esteve reunido com o procurador-geral distrital de Coimbra, que tutela o DIAP de Aveiro, que foi a Lisboa entregar em mão a informação complementar relativa a três certidões com conversas entre Armando Vara, escutado no âmbito desta investigação, e o primeiro-ministro, José Sócrates, ouvido fortuitamente.
Os dados foram solicitados pela PGR na semana passada. Estas certidões eram complementares às duas primeiras que chegaram à PGR, em 26 de Junho e 3 de Julho, respectivamente. As duas primeiras já foram objecto de um despacho da parte de Pinto Monteiro e de outro do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, que terá declarado nulas as escutas. Uma certidão final sobre as conversas de Vara e Sócrates foi recebida por Pinto Monteiro a 30 de Outubro.
A matéria e os intervenientes das restantes três certidões que foram enviadas ao procurador-geral da República em finais de Outubro não são ainda conhecidos.

Onde está a outra Face Oculta

Parece que esta coisa não tem apenas uma face oculta, mas várias.
O processo judicial - em tudo estranhíssimo - começa a dar melhores sinais de si.
Estranho, desde o início, a qualidade da gestão do que é, cuidadosamente, colocado na palete em que se abastecem os jornalistas.
Sei como é. No meu tempo dos jornais fiz, durante anos, primeiro em Coimbra e depois em Lisboa, esse trabalho de recolha de informação junto das polícias e concluí, muito cedo, que só nos davam o que queriam e não tudo o que importava para informar o público.
A gestão da informação policial ou judicial é feita, naturalmente, segundo os critérios de quem a tem e de acordo com os seus interesses, para atingir os objetivos que pretende.
Veja-se o que vem hoje no Público:
«Ontem à noite em entrevista à SIC/Notícias, Augusto Santos Silva, falou sobre a "escuta sistemática ao longo de meses em flagrantíssima violação da lei" ao primeiro-ministro que terá sido capaz de produzir 52 cassetes. Subscrevendo as críticas do ministro Vieira da Silva, o ministro da Defesa considerou que "a expressão espionagem política pode aplicar-se" neste processo.
O processo Face Oculta está hoje na primeira página de todos os jornais. Em declarações ao Expresso, Pinto Monteiro mostra-se disponível para revelar as escutas feitas no âmbito do caso Face Oculta alegando que "neste processo está a misturar-se política com Justiça" e, por isso, é urgente "acalmar tudo".
No mesmo jornal, o procurador-geral da República defende que "os políticos devem regular o segredo de Justiça, acabando com ele ou mudando a lei".
Já a manchete do Correio da Manhã refere que, no âmbito do processo Face Oculta, José Sócrates é suspeito de crime grave. "A conclusão do Ministério Público de Aveiro aponta para crime que prevê até oito anos de prisão. Em causa, segundo magistrados, está a manipulação da Comunicação Social", refere o diário.
Por fim, o Jornal de Notícias avança que o presidente do Supremo Tribunal mandou destruir todas as escutas a José Sócrates. A decisão de Noronha do Nascimento, diz o jornal, terá sido acelerada pela reacção do primeiro-ministro a últimas fugas de informação.»
Parece que está toda a gente baralhada, mas não deixa de ser interessante que o procurador-geral assuma com toda a clareza que neste processo (ou seja dentro do processo) se mistura justiça com política.
Percebe-se isso desde o princípio.
Vamos ver como serão os negócios das contra-partidas. Como no material de guerra...

Caso Freeport à beira do encerramento

Escreve o Público na sua edição de hoje:

«As investigações no âmbito do processo Freeport que já foram encerradas pelas autoridades britânicas estão também a terminar em Portugal, disse ao PÚBLICO o procurador-geral da República. O relatório final sobre o processo já começou a ser elaborado pelos investigadores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e, no máximo, até ao princípio do próximo ano deverá existir uma decisão sobre o caso: arquivamento ou acusação.
Por falta de indícios suficientes para avançar com uma acusação, os ingleses decidiram dar por findo o processo autónomo que abriram, há dois anos, em Inglaterra. Precisamente por se tratar de uma investigação autónoma, esta decisão não condiciona o processo português que envolve o nome do primeiro-ministro, no âmbito do qual têm ainda de ser realizadas algumas diligências.
Segundo a principal responsável pela investigação, a procuradora-geral adjunta e directora do DCIAP, Cândida Almeida, um dos principais motivos que explicam a lentidão deste processo de suspeita de corrupção no licenciamento do Freeport, que se arrasta há cinco anos, é a complexidade relacionada com a identificação dos percursos dos fluxos financeiros pertencentes ao complexo comercial em Alcochete. As diligências que faltam em Portugal estão precisamente ligadas ao esclarecimento sobre esses movimentos financeiros, motivo que já levou, por diversas vezes, os inspectores da Polícia Judiciária de Setúbal e os procuradores do Ministério Público a Londres. Os procuradores titulares deste processo, Paes de Faria e Vítor Magalhães, aguardam ainda elementos sobre a circulação do dinheiro, que foram solicitados às autoridades britânicas.O encerramento do processo em Inglaterra foi decidido pelo Serious Fraud Office (SFO) e pela Overseas Anti-Corruption Unit que, num comunicado divulgado ontem, informa que a investigação, apoiada pela Polícia de Londres, "foi encerrada". No mesmo comunicado, a SFO compromete-se, no entanto, "a continuar a dar assistência que for requerida pelas autoridades portuguesas através de assistência legal mútua".
Foi a primeira vez que esta agência governamental britânica, que investiga os casos de fraudes financeiras complexas, se referiu publicamente ao caso Freeport. O principal arguido do processo, Charles Smith, que esteve envolvido no licenciamento do Freeport, terá já sido informado de que a sua inquirição marcada para Dezembro em Londres foi cancelada. Além de Smith, estavam a ser investigados pelo SFO, Sean Collidge, ex-presidente do grupo Freeport, os antigos administradores Gary Russell, Jonathan Rawnsley e Rick Dattani e o consultor William Mckinney Junior. Não foram reunidos elementos suficientes para os incriminar neste processo. Em Portugal, são arguidos, além de Charles Smith, Carlos Guerra (ex-presidente do Instituto da Conservação da Natureza), José Dias Inocêncio (antigo presidente da Câmara de Alcochete), José Manuel Marques (antigo assessor da autarquia), Manuel Pedro (sócio de Charles Smith na empresa Smith & Pedro) e Eduardo Capinha Lopes (responsável pelo projecto de arquitectura).
Paralelamente, terminaram também já as inquirições no âmbito do processo disciplinar ao presidente do Eurojust (organismo europeu de cooperação judiciária), Lopes da Mota, acusado de pressionar os procuradores do processo para o arquivar.
É o desfecho natural de um processo que tem uma marca essencialmente política e que, portanto, cumpriu a sua função, que mais não foi do que introduzir elementos novos (perturbadores), que são vantajosos para uns e prejudiciais para outros, no debate político, ou melhor, na luta pelo poder.
É por demais óbvio que as autoridades policiais sabem hoje tudo sobre o percurso dos dinheiros, ou não tenham as policias um elevadíssimo nível de perfeição quando se trata de apurar coisas importantes. Só que o que move estes processos não é, por regra, o interesse na descoberta da verdade, visando uma incriminação, mas o ajuste das pedras no jogo do poder.
Aquilo que é crime, quando o arguido é um cidadão vulgar, deixa de o ser - às vezes até é virtude - quando se lida com um agente político ou económico de peso, jogando-se noutro tabuleiro com outras contrapartidas.
Tudo isto teve o seu auge, afinal, quando os homens da CIA compraram o outlet e apareceram, como ingénuos, a dizer que faltava dinheiro. Por acaso, o governo até mudou de opinião relativamente à localização do aeroporto, depois de se ter dado como certo que ele seria na Ota e não em Alcochete.
Faltam muitas peças para compor o puzzle.
Mas este jogo é outro, claramente.

11 novembro 2009

Marinho no «meio-termo»

António Marinho defendeu, agora, na televisão, a isenção de pena do corruptor ativo.
Boa malha... É meio caminho andado para a transparência, desde que se preveja a punição do corruptor ativo por denúncia caluniosa se mentir.

05 novembro 2009

O caso Vara

Já não escrevo aqui há muito tempo, não porque a Justiça tenha mudado, mas porque repisar na sua falência não passaria e repisar.

Volto com o «caso Vara» porque me cheira que há qualquer coisa de muito estranho neste caso.

Antes de tudo, há, claramente, uma campanha de imprensa, que, com intenção ou não, já liquidou quem foi um dos homens de maior sucesso do Portugal o Século XXI.

Conheci Armando Vara, há uns anos, quando pertenci ao Partido Socialista.

Nunca privei com ele, guardando da pessoa a imagem de um homem pouco culto mas muito pragmático, determinado e ambicioso.

Segui-lhe, depois, a carreira. E ele é um dos exemplos reais de uma tese que venho maturando e que um da há-de dar um livro. Em política e nesta sociedade não é preciso ser competente nem sério para ter sucesso; é preciso, apenas, ser ousado e não ter grandes preconceitos.

Quem o tem perde os amigos, acaba isolado e fica a falar sozinho, como eu, que, sendo uma pessoa bem disposta, sou havido como pessoa de mau feitio.

Não gosto da palavra «corrupção» porque, nomeadamente no plano jurídico, ela importa um conteúdo tão difuso que choca a minha sensibilidade.

A corrupção é assim equadrada no Código Penal:


Artigo 372º. Corrupção passiva para acto ilícito..
1 - O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 - Se o agente, antes da prática do facto, voluntariamente repudiar o oferecimento ou a promessa que aceitara, ou restituir a vantagem, ou, tratando-se de coisa fungível, o seu valor, é dispensado de pena.

3 - A pena é especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.


Artigo 373º. Corrupção passiva para acto lícito.
1 - O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão não contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

2 - Na mesma pena incorre o funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas.

3 - É correspondentemente aplicável o disposto na alínea b) do artigo 364.º e nos n.os 2 e 3 do artigo anterior.


Artigo 374º. Corrupção activa.
1 - Quem por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial que ao funcionário não seja devida, com o fim indicado no artigo 372.º, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

2 - Se o fim for o indicado no artigo 373.º, o agente é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.

3 - É correspondentemente aplicável o disposto na alínea b) do artigo 364.º


Depois tem o artº 377º que diz assim:


Artigo 377º. Participação económica em negócio..
1 - O funcionário que, com intenção de obter, para si ou para terceiro, participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpre, em razão da sua função, administrar, fiscalizar, defender ou realizar, é punido com pena de prisão até 5 anos.

2 - O funcionário que, por qualquer forma, receber, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial por efeito de acto jurídico-civil relativo a interesses de que tinha, por força das suas funções, no momento do acto, total ou parcialmente, a disposição, administração ou fiscalização, ainda que sem os lesar, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.

3 - A pena prevista no número anterior é também aplicável ao funcionário que receber, para si ou para terceiro, por qualquer forma, vantagem patrimonial por efeito de cobrança, arrecadação, liquidação ou pagamento que, por força das suas funções, total ou parcialmente, esteja encarregado de ordenar ou fazer, posto que não se verifique prejuízo para a Fazenda Pública ou para os interesses que lhe estão confiados.


O artº 386º estabele quem é equipado a funcionário, nos termos seguintes:


1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo; e
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.

2 - Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.
3 - São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.º a 374.º:
a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência;
b) Os funcionários nacionais de outros Estados-membros da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;
c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português.

d) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos.
4 - A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.


Lidas as linhas e as entrelinhas, mesmo sem análise de minúcia, é forçosa a conclusão de que não há corrupção desde qe não haja funcionário ou equiparado no circuito.

A meu ver, a li foi meticulosamente preparada, de forma a evitar que os políticos possam alguma vez ser punidos, façam o que façam e obtenham os benefícios que obtiverem.

O conceitos são simultaneamente densos e difusos e qualquer refexão séria sobre eles conduz a uma multplicidade de saídas que torna praticamente impossivel a punição de qualquer desses quadro a que, genericamente, se apôs o rótulo.


Mal feito fora se os fazedores das leis, que tão cautelosos foram na defesa das suas reformas, criando para si regimes excecionais, não se precavessem da hipótese de parar na cadeia em razão de um qualquer desses desvios institucionalizados.


Uma coisa é a ideia que o comum dos cidadãos tem da «corrupção» e do «tráfico de influências».

Outra, completamente diferente, é a realidade.


Por isso mesmo defendo, há muito tempo, que tanto a corrupção como o tráfico de influências sejam descriminalizados e subsituidos por um regime legal que force a transparência de todos os comportamentos que sejam considerados eticamente censuráveis.