05 setembro 2010

O descrédito do sistema judiciário

Já se previa que seria assim: o processo Casa Pia transformou-se num caso que desacredita completamente o sistema judiciário, por razões que, em minha modesta opinião, decorre exclusivamente da deficiência da lei processual penal e da má condução do processo.

Entendo, há muito tempo, que a lei processual penal é deficiente em vários pontos.

Em primeiro lugar porque não é suficientemente rigorosa no sentido de exigir, em sede de inquérito e de instrução, a produção de prova relativamente aos elementos do tipo legal de crime de forma tão exaustiva que permita extrair uma quase certeza da condenação antes de ser proferida a acusação ou a pronúncia.

Os agentes do Ministério Público e os investigadores deveriam ser pessoalmente punidos, ao menos como o são os autores de denúncia caluniosa, quando profiram acusação que, conscientemente, eles sabem que não têm suporte probatório.

Em segundo lugar, proferida a acusação ou pronunciados os arguidos, deveria prever a lei a organização de uma base instrutória, à semelhança do que ocorre no processo civil, especificando-se, de forma objetiva, os factos sobre os quais deve recair a prova em julgamento.

Todos ganharíamos e ganharia a sociedade se a produção de prova se fizesse sobre quietos concretos e objetivos, indicando a acusação e a defesa a sua prova e obrigando-se o tribunal a garantir a ordem na audiência, não permitindo divagações em matéria de produção de prova.

A lei processual penal não permite – e bem – que os depoimentos de um arguido sejam usados como prova contra os demais arguidos. Em minha opinião não deveria, tampouco, permitir o absurdo de à parte acusadora ou assistente poder ser atribuída credibilidade probatória.

É por demais óbvio que o queixoso ou o assistente não são independentes nem parciais; e, por isso mesmo, os seus depoimentos não são credíveis.

Atribuir credibilidade aos depoimentos dos queixosos sem nenhuma prova redunda no mesmo efeito que condenar sem julgamento. Isso é uma coisa horrível, que nos faz regressar aos piores tempos dos autos de fé e que não podemos aceitar no Estado democrático de direito.

Este processo é, desde o princípio, um processo mediático. Mas é o primeiro em que, embora com atraso, os arguidos jogam o mesmo jogo.

O que geralmente acontece, com prejuízo para os arguidos, é que eles ficam calados, não exercendo sequer o direito de resposta de que são titulares relativamente às acusações que o marketing judiciário injeta no sistema de comunicação social.

Há anos que manifesto a minha discordância relativamente à norma do Estatuto da Ordem dos Advogados que proíbe os advogado de debater publicamente questões relacionadas com processos em juízo.

Essa norma ofende, gravemente, o próprio exercício da advocacia, quando é certo que todos sabemos que há uma aparelho montado para fazer a propaganda dos «sucessos» da investigação criminal e do funcionamento dos tribunais.

Conheço bem essa máquina, que já existia antes do 25 de Abril. Eu próprio, no início da minha carreira de jornalista, fiz, com frequência esse trabalho de recolha de informação policial e judiciária junto dos departamentos de relações públicas das polícias ou de operadores judiciários, de quem, naturalmente, porque essas eram as regras do jogo, sempre ocultávamos a identidade.

Ainda sou também do tempo em que as coisas passaram a ser diferentes, ou seja, em que passaram a ser os operadores judiciários a ter a sua agenda de contactos e a passar ao jornalista aquilo que interessava que fosse publicado.

Esse é um jogo que é conhecido tanto pelos operadores judiciários como pelos jornalistas.

Como a informação era, geralmente, filtrada os jornalistas passaram a axigir, como condição para o tratamento da informação, que lhe fossem fornecidas peças processuais, muitas vezes em segredo de justiça, ao que os operadores acediam, na base da confiança em que haviam assentado a escolha do jornalista a quem haviam decidido fornecer «informação quente».

Era esse, para além do mais, o meio mais adequado à defesa, na hipótese de serem acusados de abuso de liberdade de imprensa, na base do princípio de que é isento de pena quem fizer afirmação com a convicção de que ela é verdadeira.

Em muitos casos que conheço, o jornalista tinha a perceção de que o fornecimento de tal informação não era gratuito. Mas essa era, por regra, uma questão secundária, que não justificava o sacrifício do direitos dos cidadãos à informação de que o jornalista é o principal responsável e o principal ator.

Perante este quadro, sempre entendi que as pessoas visadas, mesmo que estivessem sujeitas ao segredo de justiça eram titulares do direito de resposta e poderiam exigir dos meios de comunicação social a publicação das suas razões, em contraposição às mensagens injetadas pelos operadores judiciários.

Mais do que isso, sempre defendi que, antes da publicação de informação ofensiva da honra e consideração de alguém, tinha o jornalista a obrigação de ouvir a pessoa visada, tendo esta todo o direito e o interesse em responder ao que de negativo fosse dito a seu respeito. Só assim é que, em minha opinião, os meios de comunicação se podem desonerar da obrigação de indemnizar pelos danos emergentes da publicação de tais informações, porque constitui dever deontológico fundamental do jornalista o de ouvir as pessoas visadas por informação negativa.

Estas questões sempre foram tratadas como um tabu, nomeadamente pelas entidades reguladoras da comunicação social, nomeadamente pelo Conselho de Imprensa e pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, de que fui membro. Mas foram-no, sobretudo, pelos advogados que, na generalidade, nunca conseguiram resolver a antinomia (no tempo em que isso era possível) entre o segredo de justiça e as matérias publicadas na comunicação social.

Há matérias que estão sujeitas a segredo de justiça – todos os sabemos.

Quando essas matérias transvazam para a comunicação social, devem tratar-se os respetivos conteúdos de forma autónoma, ou seja, deixam de ser matéria sujeita a segredo, no que for necessário para a defesa da honra dos visados.

Carlos Cruz e os seus advogados arrancaram tarde. Tudo seria diferente se, de acordo com as teses que defendo há muitos anos, tivessem usado a estratégia de confronto com o marketing judiciário logo no início do processo.

Fizeram-nos agora – e bem – porque entenderam, seguramente, que um processo deste tipo, mediatizado ao limite, não tem defesa possível se não usarem as mesmas armas,

Foi muito interessante ver na televisão, no dia em que foi proferida uma sentença condenatória, o principal arguido condenado, um juiz e o advogado das chamadas vítimas.

E voltamos ao processo penal. Se se reconhece às chamadas vítimas o direito de afirmarem que os arguidos cometeram contra eles crimes diversos, de abuso sexual, porque se não há-de reconhecer aos arguidos o direito de afirmar que os não cometeram e, sobretudo, de afirmarem que não foram apresentadas quaisquer provas de tais crimes?

Os depoimentos dos arguidos não podem ser valorizados em termos probatórios naquilo que lhes seja desfavorável. Como pode admitir-se que os depoimentos dos queixosos, que têm interesses próprios, possam ter valor probatório.

Todos temos a noção de que os valores que se jogam no processo penal são mais preciosos do que os que se jogam nas jurisdições cíveis. Por isso, se aceitarmos tal regra, teremos que aceitar que, num destes dias, tomando em consideração tal desvalor das questões cíveis, possa o legislador admitir que o autor possa ser testemunha num ação cível em que ele seja interessado.

E aí?

Teremos meio mundo a dizer que o vizinho lhe devem milhões e o tribunal a condenar sem provas, porque a lei permite que o juiz valorize (por convicção) tal depoimento.

Essa é, talvez, a questão mais delicada do nosso sistema processual penal: a possibilidade de os juízes julgarem por convicção (para além do mais induzida pelos efeitos do marketing judiciário) sem que se tenham provado de forma inequívoca todos os elementos do tipo legal de crime e a culpa.

Um dos mais nobres princípios do Estado de Direito é o princípio in dubio pro reo. É preferível não condenar do que condenar um inocente.

Não pode admitir-se, em nenhuma circunstância, a condenação de uma pessoa pela prática de um crime sem que se faça prova inequívoca de todos os elementos do tipo legal de crime e da culpa.

Mais do que a sindicabilidade do acórdão agora proferido pelos tribunais superiores, é indispensável a sua sindicabilidade pela opinião pública.

A questão está lançada.

O que nos interessa saber – a todos – é quais são os factos e quais são as provas. Para apreciar se o tribunal agiu bem ou cometeu um grave erro judiciário não é necessário ter, nesta matéria, quaisquer conhecimentos de direito.

Indispensável é conhecer os factos que foram dados como provados e quais são as provas deles, que foram todas gravadas e apreciadas pelos juízes. Qualquer um poderá fazer o seu juízo.

Mau sinal – terrivel sinal – é que o tribunal não tenha dado a conhecer, sequer aos arguidos, quais são os concretos meios de prova que permitiram as duas conclusões.

Não entramos numa fase negra da justiça portuguesa.

Já lá estamos há muito tempo. Mas só agora é que o pais viu.

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