26 janeiro 2012

A propósito das «presenças consulares»



         Muito se tem falado, nos últimos tempos, na figuras das presenças consulares  como uma forma de, a um tempo, permitir ao Estado a poupança de recursos e, de outro lado manter um nível mínimo de serviços aos emigrantes portugueses.
            Estabelece o artº 2º do Regulamento Consular aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2009, de 31 de Março, que «os postos e as secções consulares podem, sempre que se justifique e mediante autorização do Ministro dos Negócios Estrangeiros, instituir presenças consulares.»
            A primeira conclusão a que esta leitura nos obriga é a de que a iniciativa para as «presenças consulares» compete aos titulares desses tipos de postos de carreira, carecendo de autorização do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
            Não pode haver «presenças consulares» forçadas, exigindo a lei que elas seja instituídas, por iniciativa dos postos consulares ou das secções consulares, sempre que se justifique.
            Lendo o Regulamento Consular e a Convenção de Viena sobre  Relações Consulares, aprovada por adesão pelo Decreto-Lei n.º 183/72, de 30 de Maio, não nos quedam quaisquer dúvidas de que as «presenças consulares» só podem se adotadas em quadros de emergência e pelos  titulares dos postos de carreira, no quadro da sua própria jurisdição e com os limites impostos pela convenção e, naturalmente, pela lei.
            As funções consulares são exercidas, nos termos do artº 3º da Convenção, «por postos consulares» ou por «missões diplomáticas», sendo o seu conteúdo definido pelo artº 5º da mesma.
            Um posto consular não pode ser estabelecido no território do Estado recetor sem seu consentimento, devendo a sede, a sua classe e a área da sua jurisdição ser fixadas pelo Estado representado  e submetidas a aprovação do Estado recetor.
            Nos termos do artº 4º  «o Estado que envia não poderá modificar posteriormente a sede do posto consular, a sua classe ou a sua área de jurisdição consular sem o consentimento do Estado recetor.»  E diz, expressamente o nº 4 desse artigo: «O consentimento do Estado receptor será também necessário se um consulado-geral ou um consulado desejarem abrir um vice-consulado ou uma agência consular numa localidade diferente daquela onde se situa o próprio posto consular.»
            O artº 6º do Regulamento Consular português estabelece que «as presenças consulares são realizadas dentro da área de jurisdição do posto consular que as institui e visam assegurar o apoio consular a determinada comunidade que dele objetivamente careça, através da deslocação periódica de um ou vários funcionários consulares a determinado local previamente estabelecido.»
            Chegados aqui, importa questionar o que deve entender-se por «apoio consular» e que apoio consular pode ser integrado no quadro de carência que permite ao responsável do posto pedir autorização para o estabelecimento de uma «presença consular».
            Não temos quais dúvidas de que se integram nesse quadro todas as situações que justifiquem o apoio aos portugueses em casos de tragédia ou de cataclismo.
  O apoio consular justificativo de presenças consulares pode justificar-se para os quadros previsto no Regulamento para a ajuda aos portugueses residentes no estrangeiro, nomeadamente para (citamos o artº 40º e seguintes do Regulamento):
 a) Prestação de apoio a portugueses em dificuldade, como nos casos de prisão ou de detenção;
b) Prestação de assistência no caso de sinistro, equivalente ao apoio recebido em Portugal, procurando assegurar a assistência médica necessária e tomando as demais providências adequadas à situação;
c) Prestação de socorros no caso de catástrofe natural ou de graves perturbações de ordem civil, adotando as medidas apropriadas aos acontecimentos, como a evacuação de cidadãos portugueses, sempre que tal se justifique;
d) Salvaguarda de menores e de outros incapazes que se encontrem desprotegidos e se mostrem em perigo, intervindo na tomada de providências cautelares e na organização da tutela e da curatela;
e) Prestação de apoio, quando necessário, aos familiares de portugueses falecidos no estrangeiro, acompanhando-os nas diligências a realizar, acautelando os interesses dos presumíveis herdeiros e assegurando as diligências adequadas à transferência de espólios;
f) Acompanhamento dos processos de repatriação de portugueses no estrangeiro, em particular nos casos de expulsão, de forma a prestar o aconselhamento necessário e a garantir a defesa dos direitos dos cidadãos nacionais;
g) Emissão de documentos de identificação e de viagem;
h) Apoio social, jurídico ou administrativo possível e adequado, de modo a garantir a defesa e a proteção dos direitos dos portugueses;
i) Assistência a idosos, reformados, desempregados e outros desprotegidos;
j) Diligências para localização de portugueses desaparecidos no estrangeiro;
l) Assistência à navegação marítima e à aeronáutica civil. »
Nem sequer para a assistência a presos no estrangeiro se considera admissível o estabelecimento de presenças consulares, a não se que houvesse muitos criminosos.

O exercício de funções consulares é regulado pela Convenção de Viena, que impões aos Estados hospedeiros especiais obrigações no que se refere à segurança e à proteção dos agentes e dos funcionários consulares.
Tal proteção está associada a um posto concreto, com um preciso endereço físico, que o Estado que envia o representante  não só não pode alterar como a quem não pode atribuir outra jurisdição sem o consentimento do Estado recetor.
Óbvia e inequívoca é a conclusão de que as «presenças consulares» sem prejuízo das imunidades pessoais dos funcionários, não gozam de qualquer imunidade ou proteção, nomeadamente no que se refere a instalações.
Um outro problema, que não é subestimável, é o problema tributário.
Sendo indiscutível que os postos consulares podem cobrar taxas e emolumentos nas instalações consulares acreditadas, parece-nos não haver dúvidas de que não o podem fazer fora delas, sem se sujeitarem aos regimes tributários locais, na base do pressuposto de que a prestação de serviços sujeitos a taxas ou emolumentos tem que processar-se nas instalações acreditadas.
Não temos quaisquer dúvidas de que as comunicações de dados processadas através das instalações consulares não só são lícitas como são protegidas. Mas o mesmo já não ocorre no que se refere às comunicações de dados processadas fora das instalações consulares, sobretudo se envolverem transmissão de dados pessoais de cidadãos do país hospedeiro para país estrangeiro, mesmo que esse  tenha um posto consular acreditado.
Os países acreditados gozam de um  conjunto de proteções no que se refere aos postos consulares e diplomáticos acreditados em terceiros Estados. Mas perdem essas proteções – e podem até os seus agentes incorrer em crimes – se realizarem actos da mesma natureza fora da repartição consular.
Embora tenha deixado de ter validade plena a velha conceção segundo a qual o território de um consulado ou de um embaixada é  e deve ser tratado como território do país acreditado, continua válida a regra de que os agentes de um país estrangeiro não podem ultrapassar os limites impostos por tal conceção, não gozando, de modo algum, de liberdade plena no território do país hospedeiro. Só para dar um exemplo: um chefe de posto consular pode lavrar um testamento dentro do consulado; mas não pode fazê-lo fora do consulado, pois não está autorizado a praticar atos notariais no território do país recetor.
Afigura-se, desde logo, de legalidade mais do que duvidosa a possibilidade de se estabelecerem presenças consulares para a recolha de dados para emissão de cartões de cidadão ou de passaportes foram dos postos  consulares.
Não temos dúvidas de que nalguns países o uso de equipamentos adequados à transmissão de dados pessoais é absolutamente ilegal, desde que os mesmos sejam processados foram das repartições consulares. Relevam nesse grupo os países que proíbem a dupla nacionalidade ou que, aliás à semelhança de Portugal, afirmem o princípio da prevalência da qualidade do nacional por relação ao país, não relevando as relações com outros Estados.
Mas nem sequer é aí que e encontra o ponto mais fraco do problema das presenças consulares, tal como ele vem sendo equacionado.
Como se sabe, prestam-se nos consulados serviços de registo civil. A competência para a prática de atos de registo civil, que por regra compete aos conservadores de registo civil em Portugal, é exclusiva dos titulares dos postos consulares,  ou seja dos cônsules gerais,  dos cônsules e dos chefes das repartições consulares e dos  cônsules-adjuntos por eles designados.
É certo que na reforma de 2009 foram introduzidas no Regulamento Consular duas regras que permitem ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e aos próprios cônsules nomear funcionários a quem sejam atribuídas competências na área do registo civil, com exceção do casamento.
Parece-nos óbvio que o Ministro só pode nomear para o exercício de tais competências funcionários que tenham capacidade técnica para as desenvolver. Não conhecemos até agora nenhuma despacho exercendo essa competência.
As funções de registo civil são daquelas que cabem no núcleo essencial da representação consular, até porque podem suscitar uma complexa conflitualidade, nas mais variadas áreas.
Parece-nos, em síntese, que as «presenças consulares», a respeitar-se o espírito e a letra do Regulamento Consular, só poderão ser estabelecidas por iniciativa dos titulares dos postos e que são de duvidosa legalidade se implicarem a prática de atos notariais ou de registo civil fora do posto consular.
A nosso ver – e é nesse sentido toda a doutrina – a função  de «agir na qualidade de notário e de conservador do registo civil e exercer funções similares, assim como certas funções de carácter administrativo, desde que não contrariem as leis e os regulamentos do Estado recetor» a que se refere o artº 5º, al. i) da Convenção de Viena é uma função inerente ao posto, nessa perspetiva de repartição do Estado emissor, que não pode desenvolver-se numa espécie de offshore, em concorrência, no mesmo mercado, com o Estado recetor.
Daí que me pareça que a grande utilidade das presenças consulares é de natureza social e informativa e que a mesma se deve desenvolver em cooperação com a sociedade civil.
Ultrapassar essas barreiras será abrir portas, pela certa, a conflitos indesejáveis.
Ou alguém tem dúvidas de que as maquinazinhas de recolha de dados biométricos poderão ser apreendidas, se forem usadas fora dos consulados, nos países em que tais dados são especialmente protegidos?



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