11 fevereiro 2013

Um texto de 1996, que continua atual...



LIBERDADE DE EXPRESSÃO E JUSTIÇA

 

Miguel Reis[i]

 

            Os jornais lisboetas do dia 17 de Outubro de 1996 deram honras de primeira página à advertência feita pelo juiz Cid  Geraldo a Pedro Caldeira, em termos que, muito justamente as merecem.

            O “Diário de Noticias” escreveu em titulo que o “juiz ameaça Pedro Caldeira”, remetendo-se o “Público”, também em título,  para uma citação do magistrado:”Sr. Pedro Caldeira, não brinque com a justiça”.

            Segundo decorre da leitura da notícia,  a “brincadeira” seria constituida pela profusão de entrevistas e declarações do antigo corretor à comunicação social e que poderiam redundar, nalguns casos, em “eventuais e sibilinas tentativas de alteração do sentido normal de admninistração da justiça”.

            O que vem nos jornais a propósito deste caso é muito preocupante  a vários titulos.

            1. Não me parece próprio que um juiz de hoje - da sociedade de informação - diga a um arguido que ele poderá  ver substituida a liberdade pela prisão preventiva se continuar a falar aos meios de comunicação social. Em minha modesta opinião uma tal postura é absolutamente destituida de fundamento legal e ofensiva de um direito fundamental que nenhum juiz tem o direito nem o poder de limitar  - a liberdade de expressão.

            O processo em causa não está em segredo de justiça nem Pedro Caldeira está obrigado a ele. E é no quadro do segredo de justiça que a nossa lei processual estabelece a única limitação admissível (todavia temporária e com sentido absolutamente instrumental) à liberdade de expressão.

            2. Dispõe a Constituição que os tribunais realizam a Justiça em nome do Povo. Trata-se de uma declaração indispensável - porque bondosa e profundíssima de  sentido - que não podemos deixar de citar  para apreciar  esta questão.

            As nossas sociedades democráticas não conseguiram ainda resolver o problema da inexistência de representatividade democrática dos tribunais, naquele sentido genético com que, normalmente, se fala de representatividade em tal plano. A pretexto da falácia da independência dos magistrados, elas mantêm uma lógica sacerdotal  para  as Magistraturas que afronta na origem a  lógica  democrática.

            Para muitos, não será uma coisa muito importante, sobretudo quando o tradicional conceito de democracia se vai ofuscando com a multiplicação de centros de poder sem raiz democrática, de que releva, por ser o mais chocante, o da Comissão Europeia. Vivemos, aliás,  todos conformados com isso, porque todos sentimos que não é fácil substituir o actual sistema de magistrados-funcionários por um sistema de juizes e procuradores legitimados pelo voto que pudessem, com toda a propriedade, administrar a Justiça “em nome do Povo”.

            É precisamente esta consciência da inexistência de legitimidade democrática dos tribunais que confere um especialíssimo sentido àquela declaração quase bíblica. É que, não sendo eleitos por ninguém nem estando sujeitos ao controlo de nenhum órgão democrático, os juizes estão porém obrigados a administrar a Justiça como se o tivessem sido.

            3. É isso que torna especialmente chocante a mensagem do juiz Cid Geraldo.

            Ao dizer que “a Justiça é lenta mas funciona”, juntando-lhe de imediato o aviso de que “não brinque com a Justiça” esse distinto Magistrado falou da Justiça como se ela existisse autonomamente e como se fosse uma justiça intocável e austera, afastada do Mundo e dos Homens; como se a Justiça continuasse a ser, na expressão de Álvaro Dors, “lo que hacem los jueces”.    Hoje toda a gente sabe - mesmo as criancinhas - que a Justiça não existe. E sabemo-lo sobretudo todos nós os juristas, dos advogados aos magistrados, passando pelos consultores que desistiram de litigar nesta selva.

            A mediatização do caso Pedro Caldeira - como a do caso O.J. Simpson - é extremamente positiva. Eu diria mais: a mediatização da actividade judiciária que coloque o Homem no centro do processo - processo público - é sempre positiva e o grande drama reside precisamente no facto de, nas mais das vezes, não ser o Homem mas serem os aparelhos policiais quem é colocado no centro da notícia.

            Todos nós sabemos que  é muito perigoso ser-se arguido em Portugal. Os tribunais estão saturados, os juizes têm muito que fazer e é muito difícil levar a investigação às últimas consequências. Quando os advogados procuram aproveitar pequenas contradições para enveredarem por novas vias probatórias, com vista a um melhor esclarecimento da verdade material, o que com  frequência acontece é que os juizes se impacientam, declaram que já estão esclarecidos e lhes retiram a palavra.

            A liberdade de instar dos advogados é muito limitada e continua a desenvolver-se com muitos punhos de rendas, face a uma judicatura que, salvo algumas honrosas excepções que só a valorizam, se enerva com muita facilidade, se irrita muitas vezes sem fundamento válido e, sobretudo nas camadas mais jovens, tem uma grande dificuldade de relacionamento que estriba numa exagerada prepotência.

            Por mim, se ouso polemizar, discutir, tentar fazer valer os meus argumentos com grandes senhores e grandes senhoras  que ainda se encontram nos nossos tribunais, desisto completamente de o fazer quando por detrás de uma beca encontro alguém muito  nervoso com a voz mal colocada.

              Aqueles que andam pelos tribunais sabem que isto é um totobola, a começar logo pelos juizes que lhes saem na rifa. Todos os que por cá andam há anos sabem que casos idênticos, com o mesmo recorte, têm tratamentos completamente diferentes se julgados por este ou aquele juiz, por este ou aquele colectivo. Todos os que por cá andam há anos sabem que com determinados juizes há maior liberdade de produção de prova do que com outros, cujo principal objectivo parece ser - e isso porque o sentimos e o interiorizamos - o de impedir a alteração de pre-juizos já elaborados.

           

            4.  Sou frontalmente contra a violação da intimidade das pessoas e contra o massacre mediático; mas sou pela mediatização da Justiça.

            Não me parece correcto o que as polícias  fazem todos os dias, com manifesta violação do segredo de justiça, fornecendo aos media notícias que, em muitos casos são falsas mas que, ao serem consideradas como verdadeiras pela opinião pública permitem estabelecer uma ideia positiva das instituições policiais.

            Seria muito interessante fazer um estudo comparativo das informações passadas pelas polícias aos media e dos resultados dos respectivos julgamentos. O caso mais gritante que conheço neste plano é o de um continuo dum banco que alegadamente era um superfalsificador, foi acusado de mais de cem crimes de falsificação de titulos de crédito e acabou por ser absolvido de tudo... com excepção de um crime de violação de segredo bancário, em que foi condenado à pena máxima, apenas porque foram apreendidas algumas folhas das listagens do banco, a forrar, em sua casa, uma gaiola de periquitos.

            Estou pessoalmente convencido de que há muitos inocentes condenados por pressão da comunicação social, ainda que esta aja de boa fé. Eu próprio tenho a consciência de, nos meus tempos de jornalista, ter redigido notícias que mais tarde vim a verificar serem falsas, porque dei como boas informações que me foram facultadas pela polícia.

            Assisti, entre o chocado e o ofendido, à cobertura televisiva do julgamento do Padre Frederico, não podendo deixar de manifestar a mais veemente repulsa perante um tal tipo de mediatização. Ao invés, acompanhei, quase dia a dia, o julgamento do caso O.J. Simpson e penso que ali está um bom caminho e um bom modelo de pressão positiva dos media sobre os tribunais.

 

            5. Se tivesse sido julgado em Portugal, O.J. seria condenado, de certeza absoluta, e o julgamento não duraria metade do tempo que durou. Se tivesse sido julgado na América sem a cobertura televisiva que teve o seu julgamento, sê-lo-ia, outrossim, quase de certeza.

            O.J. Simpson só não foi condenado porque todo o povo americano assistiu ao desfiar na televisão de duas ou três pequenissimas dúvidas, todavia em rota de colisão com a tese, demonstrada quase ao absoluto, de que fora ele o assassino.

            Aqueles jurados e aquele juiz estiveram durante dias e dias pressionados pela opinião pública, que discutiu exaustivamente o caso ao mais pequeno pormenor.  Aqueles jurados e aquele juiz sentiram-se seguramente pequeníssimos perante a responsabilidade que tinham sobre as costas; mas hão-de ter-se sentido, sem dúvida, efectivos representantes da grande nação americana.

            Ora, isso só foi possivel graças à mediatização do julgamento, que colocou aquele homem no centro do Mundo. Um dos  grandes dramas das nossas sociedades, profundamente mediatizadas, está em que o direito de expressão e informação é de muito dificil realização para a generalidade dos cidadãos. Essa realidade dificulta enormemente a realização da Justiça, na medida em que deveria ser ela própria uma actividade mediatizadora, como  arte de equilibrio (ars boni et aequi) e de relação entre homens e valores.

            O ideal seria que todos os arguidos pudessem ter dos meios de comunicação social a atenção que tiveram O.J. Simpson e Pedro Caldeira. Mas se esse ideal é irrealizável, não se invertam os valores e, sobretudo, não se leve tão longe o desprezo pelos mediadores quando estes  resolvam tranformar o caso deste ou daquele cidadão num caso.

            É do domínio público que a história de Pedro Caldeira saltou para os jornais quando o processo ainda estava em segredo de justiça e foi alimentada durante meses por informação com o mesmo sentido do que viria a ter a acusação.  Digamos que a acusação - o seu teor, nalguns aspectos, ou pelo menos o seu sentido - dominou durante muito largos meses  o file Caldeira no processo mediático.

            Não ouvi ninguém dizer que esse facto constituia uma forma de pressão sobre o tribunal e, por isso, acho que é absolutamente chocante esta intimação ao silêncio feita pelo juiz Cid Geraldo. É que se há alguma coisa que condiciona a opinião pública - et pour cause o tribunal - é o que terceiros (maxime o Ministério Público) disseram directa ou indirectamente, durante anos, do antigo corretor.

            Parece-me absolutamente legítimo que, no exercício do sagrado direito de expressão , ele tente compensar essa onda negativa com depoimentos seus, com intervenções suas na comunicação social. Mas mais do que legítimo, parece-me que é extremamente positivo que  Pedro Caldeira dê entrevistas, fale, conte a sua história. É que quanto mais elementos ele fornecer à opinião pública - e por isso também ao tribunal - mais longe há-de ir o apuramento da verdade e mais perfeita há-de ser a decisão judicial que se adopte sobre o seu caso.

            A publicidade das audiências constitui, quiçá, a maior garantia do respeito pelos direitos individuais e do esforço pela realização da justiça. A televisão permite, felizmente, ampliar essa virtude, desde que se assegure sem limitações - e sobretudo sem preconceitos - a liberdade de expressão. E se necessidade de regulação houver parece-me que se deve evitar, em todo o caso, o recurso à intervenção judiciária. É que, nesse plano, a Justiça só tem a perder se os tribunais se precipitarem num campo que, por natureza, não é o seu.

            A ofensa das normas deontológicas só deve ser apreciada pelos tribunais quando isso se tornar indispensável - de permeio - para a aplicação do direito. No mais, é campo pré-jurídico, em que nos parece que os juizes não devem envolver-se, mesmo quando as intervenções mediáticas possam ser interpretadas por alguns como parciais ou pressionantes do tribunal.

            Mal de nós quando os tribunais, que devem ser eles próprios garantes das liberdades sintam a sua própria liberdade anquilosada por umas entrevistas a jornais ou umas  séries de televisão que, afinal, não fazem mais do que trazer a público versões tão parciais como as que, ao invés, sempre se contêm na acusação.

            Nesta nova era que é de informação, valerá a pena afirmar, como Copérnico, a heresia da translacção...  Epure se muove...

 


25/10/1996

           



[i]  Advogado
Ex-jornalista e ex-membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social
Passaram quase 10 anos.
Escrevi isto em 2003:

"
A SEGUNDA VIOLAÇÃO DAS CRIANÇAS DA CASA PIA

 

            A conferência de imprensa da Drª Catalina Pestana é preocupante. Ao afirmar como afirmou que o adiamento do julgamento de Carlos Silvino pode colocar os menores que estão arrolados como testemunhas à beira do distúrbio mental indicia que eles estarão numa situação limitadora da sua liberdade.

            O que a Drª Catalina Pestana afirmou na televisão foi que as referidas testemunhas não aguentam por mais tempo não ser ouvidas em juízo. Isto é um paradoxo que só se entende se os jovens em causa estiverem a ser preparados para intervir em juízo, o que constituiria, se viesse a verificar-se uma segunda violação.

            Por definição, as testemunhas não sofrem, pela simples razão de que elas não têm outro interesse que não seja a cooperação libertadora para a descoberta da verdade.

            Para as testemunhas é indiferente depôr hoje ou depôr amanhã. Nenhuma libertação lhes advêm do facto de deporem hoje, a não ser que elas estejam sujeitas a uma tortura psicológica insuportável por um longo período de tempo.

            As testemunhas devem estar livres nas suas pessoas, sob pena de os seus depoimentos serem inócuos. Aliás, a autoridade judiciária está obrigada – ao menos na leitura que fazemos do artº 131º,2 do CPP – a verificar “a aptidão física e mental” da testemunha, quando isso for necessário para avaliar a sua credibilidade.

            A nossa lei  processual – que é má – contém fortes limitações à valoração da prova testemunhal. Só para dar um exemplo relevante no que se refere à matéria na ordem do dia, referimos a condicionante do artº 131º,3 que deixa ao tribunal a possibilidade de ordenar  perícias sobre a personalidade dos menores de dezasseis anos que depuserem sobre crimes sexuais.

            Estas perícias serão inevitáveis se se constatar que as testemunhas foram sujeitas a um trabalho de manipulação, facilmente destruído por uma advogado com alguma experiência do foro.

            Não há nenhuma testemunha “ensinada” que resista a uma instância cuidadosa e prudente.


29/10/2003


Miguel Reis
 
PS - Se os arguidos não tivessem sido condenados como se resolveria o problema do dinheiro que o Estado deu às vítimas, bem sabendo que isso condicionaria a sua postura em juizo.
E continua no ar a questão essencial que é a seguinte: quem é que lucrou com a destruição do Sr. Televisão?

Reflexão antiga sobre a mesma angústia

Escrevi este texto em novembro de 2006. E tudo piorou...

«Falência - Diz-se que uma empresa se encontra em falência técnica quando o Passivo é superior ao Activo, ou seja, a Situação Líquida é negativa.
Falência é o ato de decretar o fim das atividades de algo: o fim de uma empresa, de uma sociedade, de um império, dos órgãos do corpo humano. Falta, erro, omissão, engano.

Evitando a Falência da Empresa - Manter uma empresa viva, torna-se nos conturbados dias atuais, um dos maiores desafios de qualquer administrador. As rápidas alterações ambientais de mercado que tem de ser levadas em consideração, superam em muito a capacidade de vários gestores. Na maior parte das vezes lhes falta a formação necessária para enfrentar esses desafios, em muitas outras, a falta é de visão. A formação como empresário ou dirigente precisa ser ágil o suficiente para permitir agir a tempo nas situações de risco, para as quais a informação é seu mais poderoso aliado.»


 

A Justiça é – desde os primórdios – o lugar geométrico por excelência do Direito que, na definição de Ulpinus, se afirmava numa lógica de triângulo.

O famoso jurista justinianeu definia o Direito (Jus) como a síntese do viver honestamente (honeste vivere), não lesar os outros (alterum non laedere) e dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere).

A realização da Justiça e o progresso do Direito ao longo dos séculos têm marcas profundas da nossa Aug;.O;., pelo que se justifica que, nestes tempos conturbados, se abra uma nova reflexão sobre a problemática de uma e do outro, num tempo de mudança tão importante como foram outros tempos de rotura.

O problema não é novo mas agravou-se.

Já há 35 anos um colega meu, de que não lembro o nome – um caloiro atrevido com uma intelectualite aguda – suscitada, à margem das aulas de Introdução ao Estudo do Direito do Prof. Castanheira Neves, o problema da sobrevivência do Direito na Sociedade Tecnológica.

Isso quando os programadores tinham conseguido dar os primeiros grandes passos na inteligência artificial e se alertava para o risco de, perversamente, os juízes poderem ser substituídos por máquinas.

O mesmo tipo de receio foi difundido pelo cinema, anos mais tarde, por exemplo no 2001 – Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick

Nestes 35 anos deram-se saltos de gigante e operaram-se mudanças profundas, tanto no Direito como nas tecnologias.

E o que é dramático é que, no campo da Justiça, se abriu, em quase todos os países ocidentais  uma crise de dimensões nunca constatadas, que parece ameaçar a própria sobrevivência do Direito, tal como o entendemos há gerações.

As noticias que hoje lemos nos jornais e na Internet, dão-nos a ideia de que há uma crise global nas justiças.

Poucos são os países do Mundo em que é possível cobrar uma dívida em tempo razoável ou em que pode ter-se a pretensão de obter uma decisão jurisdicional para a defesa de um direito em tempo útil.

O absurdo é tanto maior quanto é certo que os meios de que, globalmente, se socorrem as justiças são incrivelmente poderosos e o número de operadores se multiplicou quase em progressão geométrica.

Para uns parece haver uma mão invisível que bloqueia os sistemas judiciários de forma a que eles não possam afirmar a vitalidade suficiente para resolver os problemas que lhe são suscitados pela globalização.

Para outros não há mais do que um fenómeno de adaptação das sociedades e das políticas ao novo  mercado e à nova sociedade emergente da globalização.

Junto-me, naturalmente, a estes últimos.

Ninguém ousa pôr em causa de forma directa o modelo tradicional da realização da justiça – ou seja do que é praticado pelos tribunais[1]. Mas a verdade é que, de forma directa ou subreptícia, o que se vem fazendo à escala global corresponde a uma destruição de elementos essenciais do modelo.

Ainda recentemente, o novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, qualificava como «lixo» boa parte dos processos que ocupam os tribunais e apelava à coragem política para o limpar.

Em todo o Mundo – e também em Portugal – os governos promovem «meios alternativos» e apelam ao recurso massivo aos tribunais arbitrais, que instituem como tábua de salvação para a regulação dos conflitos.

Isto é tanto mais absurdo quanto é certo que o recurso às novas tecnologias permitiria poupanças formidáveis (de tempo e de dinheiro) e a rentabilização dos tribunais em tempos de lhes permitir uma actividade auto-sustentada pelos seus próprios recursos.

Os absurdos têm sempre uma lógica e essa lógica, no que respeita ao funcionamento do judiciário tradicional, parece-me cada vez mais evidente.

O Estado mudou em todos os planetas.

A globalização deu origem a um imenso mercado. E o mercado da consultoria e dos serviços jurídicos é dos mais promissores, como o são sempre todos os mercados pouco transparentes.

Esse mercado só é interessante, de um ponto de vista estratégico, se os tradicionais aparelhos judiciários entrarem em rotura e deixarem de satisfazer as necessidades dos cidadãos e das empresas.

Aí se abrem portas a negócios extraordinários, conduzidos à escala global por quem se posicionar nos melhores locais estratégicos.

Em Portugal, a previsão da despesa consolidada do Ministério da Justiça para o próximo ano é de 1.289 milhões de euros. Não se prevê que, apesar de tão elevado número, os tribunais vão funcionar melhor, porque parece que  ninguém está interessado nisso.

Aliás, é o próprio Estado quem investe (e fortemente) nos meios alternativos, que não são mais do que uma promoção dos meios alternativos privados.

É um sinal dos tempos, coerente com outros.

Também antes era o Estado quem tinha as suas próprias ideias. E hoje fazem-se concursos de ideias, encomendam-se projectos de lei e contratam-se auditorias externas para validar os negócios públicos.

As auditorias são como os pareceres – dizem sempre, como ensinava Calamandrei,  o que interessa a quem as paga.

No que respeita aos tribunais, em Portugal é o próprio Estado quem menos acredita nos tribunais públicos. Fora dos casos em que a iniciativa é dos particulares, em quadros de ausência de convenção arbitral, os grandes negócios em que intervêm as pessoas colectivas públicas são dirimidos de forma privada em tribunais arbitrais.

Apenas a título de exemplo, cito os jornais para lembrar que as «vítimas» da Casa Pia já foram indemnizadas, por decisão de um tribunal privado, apesar de ainda estar longe do fim o julgamento em que se discute a questão de fundo.

Há centenas ou milhares de outros casos, de que temos noticias aqui ou ali pelos jornais, mas cujos contornos e cujos detalhes se não conhecem, por serem, por natureza, reservados.

Para o próximo ano anuncia-se o início da mediação penal, que não constitui outra coisa que não seja o alargamento do mercado à área penal e a privatização parcial dessa área.

Do mesmo modo, está anunciado o fim do tradicional sistema de apoio judiciário (que constituía uma forma de apoio ao início de carreira dos jovens advogados) substituindo-se tal sistema por um outro assente na contratação de grandes lotes de processos e no pagamento de avenças pelo seu patrocínio.

 

É evidente que  o sistema de justiça, tal como o conhecemos hoje, está falido, porque não consegue responder em tempo razoável às solicitações que lhe são feitas.

Não há sequer dados rigorosos sobre as pendências nos tribunais.

Na apresentação do Orçamento do Estado que o Ministro da Justiça fez recentemente, os dados citados são de 2004 e apontam para a pendência de mais de 1.100.000 processos nos tribunais cíveis e um número não verificável de  processos criminais, com mais de 104.000 arguidos.

Estamos perante um mercado fantástico, passível de gerar biliões de euros a vários operadores, desde os projectistas das leis aos advogados.

É óbvio que não se pode dizer isto directamente, porque do outro lado está a força poderosa dos juízes e a pesada máquina dos funcionários de justiça.

Parece óbvio, também, que seria possível modificar o sistema de forma adequada ao seu funcionamento.

Como alternativa à falência, poderia pensar-se na recuperação da empresa.

Mas, tal como acontece muitas vezes no comércio, ninguém parece interessado nisso.



[1] É conhecida a definição do romanista espanhol Álvaro Dors que dizia que «derecho es lo que hacen los jueces».