06 fevereiro 2020

As respostas de António Costa e o segredo de justiça



O primeiro ministro publicou, no site oficial do Governo, esta nota:
Tendo sido postas a circular versões parciais do depoimento do Primeiro-Ministro como testemunha arrolada pelo Professor Doutor José Alberto Azeredo Lopes, entendeu o Primeiro-Ministro dever proceder à divulgação pública integral das respostas a todas as questões que lhe foram colocadas e que constam do depoimento entregue ao Tribunal Central de Instrução Criminal, às 16h22 horas, do dia 4 de fevereiro de 2020.
A TSF noticiou que o  Ministério Público confirmou que foi notificado de um  despacho do juiz Carlos Alexandre, no qual o juiz, que dirige a fase de instrução do caso de Tancos, pediu ao Ministério Público que se pronuncie sobre uma eventual quebra do segredo de justiça por parte do primeiro-ministro, que divulgou, na íntegra, as respostas que enviou às perguntas de Carlos Alexandre enquanto testemunha de defesa de Azeredo Lopes.
Parece-me óbvio que os depoimentos de qualquer pessoa não são, em nenhuma circunstância, sujeitos a segredo de justiça, pela simples razão de que eles são sempre, por natureza, exteriores ao processo.
O depoente não conhece o processo, não está dentro dele e não está obrigado a guardar segredo sobre as suas próprias palavras.
Goza, na plenitude, do direito de expressão, protegido pelo artº 37º da Constituição da República, direito que não pode ser confiscado nem sujeito a nenhuma forma de censura.
Diz essa disposição constitucional:
“1 - Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2 - O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. (…)”
O processo penal é, em princípio, público, sendo o segredo de justiça, ao mesmo tempo, uma aberração e uma exceção.
Uma aberração, porque ninguém o respeita.
Todos os dias assistimos a divulgação, pelos meios de comunicação social, de informações alegadamente contida em processos judiciais.
O artº 86º do Código de Processo Penal dispõe o seguinte:
“1 - O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei. Ver jurisprudência
2 - O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes processuais.
3 - Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
4 - No caso de o processo ter sido sujeito, nos termos do número anterior, a segredo de justiça, o Ministério Público, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito.
5 - No caso de o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento do segredo de justiça, mas o Ministério Público não o determinar, os autos são remetidos ao juiz de instrução para decisão, por despacho irrecorrível.
6 - A publicidade do processo implica, nos termos definidos pela lei e, em especial, pelos artigos seguintes, os direitos de:
a) Assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos processuais na fase de julgamento;
b) Narração dos atos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social;
c) Consulta do auto e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer partes dele. Ver jurisprudência
7 - A publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova. A autoridade judiciária especifica, por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for caso disso, a sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem disserem respeito.
8 - O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as proibições de:
a) Assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir;
b) Divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação.
9 - A autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar:
a) Conveniente ao esclarecimento da verdade; ou
b) Indispensável ao exercício de direitos pelos interessados. Ver jurisprudência
10 - As pessoas referidas no número anterior são identificadas no processo, com indicação do ato ou documento de cujo conteúdo tomam conhecimento e ficam, em todo o caso, vinculadas pelo segredo de justiça.
11 - A autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil.
12 - Se o processo respeitar a acidente causado por veículo de circulação terrestre, a autoridade judiciária autoriza a passagem de certidão:
a) Em que seja dado conhecimento de acto ou documento em segredo de justiça, para os fins previstos na última parte do número anterior e perante requerimento fundamentado no disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º;
b) Do auto de notícia do acidente levantado por entidade policial, para efeitos de composição extrajudicial de litígio em que seja interessada entidade seguradora para a qual esteja transferida a responsabilidade civil.
13 - O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação:
a) A pedido de pessoas publicamente postas em causa; ou
b) Para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública.”
Perante estes preceitos, afigura-se absolutamente disparatada a ideia de que a pessoa que produz um depoimento em processo penal esteja obrigada a segredo sobre o que ela própria diz, como se fosse lícito coartar-lhe os direitos de expressão e de informação.

Miguel Reis
6/2/2020

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