01 outubro 2007

As novas tecnologias, o direito e a mudança de paradigma das profissões jurídicas

Assisti, há mais de 25 anos, na Faculdade de Direito de Coimbra, a uma conferência sobre a problemática da sobrevivência do direito na sociedade tecnológica.
Naquele tempo, de guerra fria e de fitas perfuradas, aquilo a que assistimos hoje não passava de pura ficção. Mas algumas das ideias expostas continuam a ser de plena actualidade.
A sociedade tecnológica importou, tal como então já se previa, uma profunda alteração no que se refere à formação do direito legal.
Vivemos hoje inundados de documentos e a simplicidade a que conduziam as sínteses passadas a livro foi subsituída por um complexo sistema de fontes, onde, cada vez mais, o importante da ciência está na qualidade da pesquisa.
Mas, de outro lado, no plano da realização do direito, que é cronologicamente posterior à formação do direito, por via dos processos legislativos, assistimos a uma onda de simplificação, como se o legislador tentasse oferecer à sociedade uma espécie de bónus compensatório das dificuldades criadas durante décadas no plano do processo legislativo.
Também, então, já se previa isso. Como se previa que as profissões jurídicas haveriam de sofrer rudes golpes, maxime pela completa anulação de algumas áreas do seu trabalho tradicional.
A ficção está a transformar-se, muito rapidamente, em realidade, sendo hoje já muito visíveis e identificáveis as tendências do que nos espera nos próximos anos.
As «gavetinhas» do direito e as «convergências»
O direito, tal como se ensinava há 30 anos, repartia-se em gavetinhas de especialidade, preenchidas pelos diversos ramos em que a doutrina os foi dividindo, por via das autonomias científicas que cada ramo foi assumindo.
Depois dos movimentos de codificação modernos, que têm os seus pontos altos com os códigos civis de Napoleão (1804) e o código civil alemão (1900) vivemos sob a égide de um racionalismo valorizador das profissões jurídicas.
As vantagens tradicionalmente associadas à codificação são a de ela facilitar um melhor conhecimento do direito aplicável, a de evitar a incompatibilidade entre as fontes , por via da valorização de princípios gerais informadores do sistema e a de oferecer ao intérprete um mapa mais racional e perfeito para a aplicação do direito.
Entre as desvantagens sempre se apontaram as da maior rigidez, por relação ao diktat e a da desactualização por relação à evolução da sociedade.
Entre nós, CASTANHEIRA NEVES (Questão de Facto, Questão de Direito, 1967) foi um dos mais lídimos defensores do interpretativismo, ao considerar que, partindo dos códigos, «o direito não é elemento, mas síntese, não é premissa de validade, mas validade cumprida (...), não é prius, mas posterius, não é dado, mas solução, não está no princípio, mas no fim (...)». E ainda que «não é "o direito" que se distingue de "o facto", pois o direito é a síntese normativo-material em que o "facto" é também elemento, aquela síntese que justamente a distinção problemática criticamente prepara e fundamenta..»
Partindo da crítica cáustica ao positivismo, ao jusnaturalismo e às várias teorias silogísticas, CASTANHEIRA NEVES valoriza, de forma muito especial o recurso à hermenêutica no quadro do sistema jurídico e o constante apelos aos princípios normativos, como instrumento essencial para um funcionamento racionalista do mesmo.
Da sua doutrina releva a valorização do direito mas também a valorização dos juristas, como intérpretes essenciais da mundivivência que o justifica, que o projecta e em que ele se realiza.
Em CASTANHEIRA NEVES as «gavetinhas» funcionavam, mas era como se entre elas houvesse ligações de interacção permanente, suscitando todos os dias novos problemas que o intérprete teria que resolver, de uma forma dinânima, com o constante apelo aos princípios normativos e à consciência ético-axiológica.
O grande Mestre tinha um discurso pesado e difícil para os nossos 18 anos, mas estou em crer que influenciou, de forma determinante, para o bem o para o mal, todas as gerações que passaram pelas suas aulas de Introdução ao Estudo do Direito.
A propósito do tema da sobrevivência do direito na sociedade tecnológica - que se adivinhava mas que ninguém sonhava que chegasse tão depressa - lembro-me de o ouvir aplaudir vantagens mas, sobretudo, de chamar a atenção para os riscos da desumanização e da eliminação dos intérpretes.
É que o direito - e a segurança jurídica para a qual uma lógica jusnormativa dinâmica apela, em última instância - é dificilmente configurável com processos de automação (e ainda menos processos de automatização) como os que as novas tecnologias permitem.
Lembro-me de, nessa época, termos feito algumas incursões no direito soviético, seguindo os ensinamentos de alguns autores ortodoxos que apontavam precisamente em sentido contrário: o direito fixava-se numa realização prévia à sua aplicação, cabendo nessa realização prévia a própria interpretação, que tinha que ser unívoca, implacavelmente precisa, automatizável antes do próprio intérprete que, pela natureza das coisas, não existia como tal.
E justificava-se essa perfeição, precisamente, pela necessidade de assegurar a classe operária a segurança jurídica indispensável à luta permanente pela construção do socialismo, segurança essa impossivel se fosse dado a alguém olhar a mesma norma por diversos prismas e tomando em consideração diversos interesses, que não o interesse de tal construção.
A aplicação do direito não carecia de um intéprete mas de um bom funcionamento dos escritórios controlados pelo partido ou seja da burocracia dirigida pela nomenklatura, a quem incumbia fazer valer as normas e operar a sua convergência visando a construção socialista.
Os juristas - como os encaramos na Europa - quase que desapareceram, absorvidos pela nomenklatura. Muitos foram debater direito para o Gulag...
Naqueles tempos de guerra fria e de fitas perfuradas, que, milagrosamente, davam respostas objectivas e inequívocas às questões que lhe eram colocadas logo constatamos que um tal modelo poderia antecipar, de forma eficaz, a aplicação das novas tecnologias ao direito, se a IBM, que colaborou com os nazis, tivesse cedido tecnologia aos soviéticos.
Era bom que o tivesse feito porque teríamos hoje, seguramente, mais um referencial do que não queremos.
A burocratização da Europa
A Europa evoluiu dos 6 até aos 27 com uma dualidade entre um sistema de raiz romano-germânica, no continente, e outro anglo-saxónico, nas ilhas britânicas e na Irlanda.
O problema que hoje marca, de uma forma algo trágica, o direito europeu não está nesse facto mas num peso brutal da burocracia resultante de uma nova nomenklatura que vem gerando um autêntico polvo, perante os problemas que as realidades da integração suscitam.
O direito legal da União é hoje muito mais uma criação dessa multidão de funcionários e de comissões (que não têm nenhuma raiz democrática) do que do poder político dos estados, cujos dirigentes não têm, muitas vezes, tempo para aquecer os lugares e muito menos para se aperceberem da complexa problemática suscitada pelo regulamentarismo comunitário.
É certo que o princípio da subsidiaridade deixa uma razoável margem aos estados. Mas não é menos certo que, para além dos regulamentos, que são de aplicação directa, as directivas contém, por regra, uma escassissima margem de manobra, visando uma harmonização que, em muitos casos e situações, é inexplicada e inexplicável.
Quando não há outros argumentos, os legisladores da cada país já hoje se refugiam no argumento vazio de que a justificação de determinada medida se encontra nas imposições comunitárias, como se nisso estivesse um fatalismo incontornável.
Se é assim no plano do político, bem se compreende que mais o seja no plano do jurídico, pois que é no primeiro que, por regra, se encontra o lugar próprio do debate de ideias. Daí que a normalização decorrente do funcionamento do próprio sistema político da União tenda a conformar uma normalização concordante - e provavelmente mais forte e mais rigorosa - no plano do jurídico.
Nesta mesma linha se compreende que o sistema de acesso e o próprio sistema de funcionamento dos tribunais da União Europeia seja extremamente hermético e não prometa abrir-se sequer no quadro do Tratado Reformador, caindo por terra os sonhos dos que pensavam na hipótese de o defunto projecto de tratado constitucional poder abrir porta a juizos
de constitucionalidade sobre os normativos europeus.
É evidente que uma coesão acelerada como a que se projectou na Europa tem custos especiais. E estes são alguns deles.
Uma outra vertente, todavia conforme, pela qual se pode analisar o fenómeno é a do mercado.
Até agora tem-se falado apenas das exigências do mercado, tudo se justificando a benefício das empresas e de um projecto de desenvolvimento sustentável que não pode alhear-se das realidades - e muito menos das necessidades - da globalização.
O argumento tem servido para abusar dos estereótipos (mais facilmente automatizáveis, nomeadamente no plano da tradução) e para tendencializar a resposta jurídica no estilo de uma FAQ, substituindo-se os juristas com manifesta vantagem.
Do programa do Governo Sócrates recortamos estes pequenos extractos:
«Os cidadãos e as empresas não podem ser onerados com imposições burocráticas que nada acrescentam à qualidade dos serviços (...). No interesse dos cidadãos e das empresas serão simplificados os controlos de natureza administrativa, eliminando-se actos e práticas registrais e notariais que não importem um valor acescentado e dificultem a vida do cidadão e da empresa».
É obvio que este tipo de discurso merece o aplauso de todos. E as práticas mereceram até a classificação do Governo português como um dos campeões ex-aequo da implementação do e_Government.
O drama do SIMPLEX
O sistema SIMPLEX poderia ser uma invenção extraordinária, constituindo uma ponte entre o direito de genes romano-germânicos que temos e que estudamos e a sociedade da informação, do conhecimento e da globalização. E isso porque nos parece absolutamente compatível a introdução das novas tecnologias e a manutenção dos níveis de rigor jurídico e de liberdade que devem, segundo a lógica tradicional, informar os actos e os negócios jurídicos.
Só que os fautores do sistema o conceberam de modo diverso, sem dúvida mais coerente com a lógica burocratizadora que os grandes interesses vêm impondo à construção jurídica a nivel mundial.
Só para dar alguns exemplos:
a) Tecnicamente, era perfeitamente possível constituir sociedades na base de contratos sociais que traduzissem a vontade efectiva das partes, em vez da (quase) imposição da adesão a meia dúzia de estereótipos contratuais pré-elaborados. Quando criou um sistema que favorece a adopção das minutas pré-fabricadas, o legislador sabia perfeitamente que criava um monopólio do fabrico das minutas e da própria interpretação dos contratos que, tendo sido feitos por ele sem consulta de ninguém, só por ele podem ser rigorosamente interpretados.
b) No domínio das marcas, usando o seu poder, lançou o Governo mão da criação de marcas que regista em nome da administração e que posteriormente vende, aproveitando-se de uma facilidade que não está acessivel a mais ninguém.
c) No domínio do direito da imigração, o Governo criou estruturas próprias que usam mecanismos do sistema e se apropriam da própria consultoria, em condições de manifesto abuso da concorrência por relação aos operadores privados. O mesmo é válido no plano do direito da nacionalidade, área em que o tesouro investe milhões para ocupar um mercado tradicionalmente ocupado por operadores privados.
d) Depois da administrativização do processo de divórcio, que já tem alguns anos, a recente reforma do Código do Registo Civil veio conformar a lei com a realidade, legalizando a procuradoria ilícita que até agora vinha sendo desenvolvida por conservadores e funcionários e afirmando expressamente que, a partir de agora, podem eles elaborar as peças necessárias ao processo de divórcio.
e) Na recente reforma do Código Civil e do Código do Registo Civil veio estabelecer-se um «procedimento simplificado» de habilitação e partilha, a processar imediatamente após a declaração do óbito ou do divórcio, procedimentos esses que, apesar da complexidade das matérias, podem ser feitos pelos funcionários, não carecendo sequer de intervenção de um conservador licenciado em direito.
f) Anuncia-se um «esquema» em que se permitirá aos cidadãos apresentar queixas on-line às forças de segurança, sem que se anuncie previamente uma campanha de esclarecimento sobre o sentido e o alcance do direito penal e processual penal ou sem que se introduzam programas de informação sobre estas matérias nas escolas.
g) Anuncia-se um «esquema» de agilização do processo de compra e venda de imóveis, por via do processamento perante um balcão único.
h) Anuncia-se um «esquema» de registo informatizado da propriedade industrial, relativo às patentes, modelos de utilidade e desenhos.
O programa SIMPLEX para o ano de 2007 contém um enunciado de medidas que, lido de forma desatenta, é simplesmente aliciante. Só que, se pensarmos na aplicação de algumas dessas medidas por via de uma solução informática, sem intermediação humana corremos o sério risco de as transformar em solução desumanas e atentórias dos direitos dos cidadãos consumidores, que, na circunstância, têm o Estado como fornecedor.
Nada disto é ingénuo
Tenho para mim que nada disto é ingénuo e que, bem pelo contrário, é coerente e bem elaborado, em conformidade com o «novo espírito» do sistema.
Já assistimos a coisas parecidas na agricultura e no comércio, com a única diferença de que o Estado não «atacou» o mercado de forma tão brutal como aquela que está a adoptar para os serviços. Mas o certo é que, tanto num sector como no outro, se incumbiu de criar mecanismos que afastassem os pequenos do mercado para dar lugar aos grandes, ainda que isso tenha custado milhões aos contribuintes de Portugal e da União.
É evidente que o chavão da «simplificação» é sedutor. Mas é ainda mais evidente que ele importa um paradoxo, que consiste em liquidar uma série de serviços que estavam, essencialmente, na mão de operadores privados, para os substituir por serviços públicos, em que o Estado investe milhões com muito pouca transparência, sem que daí venha uma especial vantagem às pessoas e às empresas.
O SIMPLEX poderia ser uma coisa boa se fosse formatado como uma ferramenta de modernização das práticas dos operadores tradicionais e se, no que se refere às questões jurídicas, não afirmasse um hermetismo tal que redunda na indiscutibilidade de muitas questões.
Claro que haverá quem argumente que isso não é verdade porque abertas ficam quase todas as vias tradicionais. Só que não é assim, porque o Estado reserva para si a chave da celeridade e a chave do preço, desvalorizando, de forma significativa, os preços dos serviços que se realizem por via digital e que só ele pode prestar.
Os notários foram as primeiras vítimas, com um mercado perdido em mais de 50% e com novas reduções da sua área de intervenção em perspectiva.
Os advogados, a quem ofereceram o prato de lentilhas dos reconhecimentos, calaram-se e começaram a levar agora a sua tosa em diversas áreas da sua intervenção tradicional.
Primeiro foi a administrativização dos divórcios e a desvalorização da sua importância jurídica. Agora é a machadada final na advocacia de família com a legalização dos cambões que aquela reforma gerou.
Depois foi a destruição de uma boa parte do direito societário, tal como o concebiamos, por via da facilitação da constituição estereotipada das sociedades, em substituição das sociedades personalizadas.
Mais recentemente foi a desvalorização do direito sucessório, com a criação de expedientes práticos mas pouco seguros, que aconselham o não recurso a um profissional forense, ainda que em termos de aconselhamento, pois que todo o poder é conferido ao funcionário, provavelmente analfabeto jurídico, que vai realizar o acto.
As anunciadas «facilidades» no âmbito das marcas e patentes liquidarão, também, uma boa parte desse mercado, não sendo melhores as perspectivas no que se refere ao direito fiscal, cuja automação também se anuncia.
Será isto bom para os cidadãos?
Aparentemente tudo isto é muito bom para os cidadãos e para as empresas e, por isso mesmo, merecerá o aplauso de todos.
Muitos dos que me leem considerarão que este é o discurso de um elemento de uma classe privilegiada que está a perder terreno e, por isso, um discurso que não passa de uma lamúria.
Puro engano.
Penso que a indiscutibilidade a que este novo modelo burocrático nos conduz e para a qual nos alicia é má para os cidadãos e para as empresas. Mas tenho para mim que é inevitável
Esta é, aliás, apenas um pequena ponta do iceberg, existindo outras áreas em que, de forma sofisticada, se vem afirmando a mesma lógica.
As democracias modernas tiveram o mérito de levar aos parlamentos cáfilas de analfabetos ou políticos pouco informados, que mostram uma grandes insensiblidade e uma enorme ignorância sobre o que falam.
O poder reside exclusivamente nas direcções partidárias e estas também são vulnerveis à globalização e aos pequenos grupos fechados que definem os destinos do Mundo de hoje.
Está na moda em toda a Europa a afirmação da necessidade de «simplificação», mesmo que isso custe o sepultar de séculos de experiência e de teorização.
Está na moda em toda a Europa a desvalorização do sistema de justiça tradicional e a implementação de medidas que, a pretexto de aumentar a segurança jurídica, efectivamente a restringem.
O mais recente exemplo que temos disso mesmo está na recente reforma do modelo de recursos em processo civil, assente nesse princípio simplificador e no apelo à quase indiscutibilidade do que é decidido por um juiz de primeira instância.
Argumenta-se que a globalização e a internacionalização das economias não nos permitem perder tanto tempo para parir decisões judiciais definitivas e com trânsito em julgado e que, por isso, é preciso descongestionar os tribunais.
Trata-se, efectivamente, de uma saída perversa, pois que se as decisões judiciais são demoradas, em razão do número de processos, o caminho correcto e normal seria o do aumento dos número de juizes.
Mas não: o que afinal se pretende é a própria descrebilização do sistema judiciário tradicional e, cumulativamente, mesmo contra o senso comum, a redução do mercado dos advogados que patrocinavam os recursos que vão acabar.
Outros negócios
Ao mesmo tempo que reduz as possibilidades de recurso em processo civil, o Governo desfaz-se em apelos ao recurso a «meios alternativos», nomeadamente à arbitragem e investe milhões na promoção desse negócio alheio ao Estado.
A arbitragem não precisa da publicidade do Estado, não se compreendendo, à primeira vista, porque razão ele a faz e ainda menos se compreendendo porque razão molda o processo civil de sorte a proteger o respectivo mercado.
A atitude não deixa, porém, se ser coerente.
Em 1992 havia 925.000 advogados nos Estados Unidos e cerca de 500.000 na Europa, facturando o primeiro grupo cerca de 95 mil milhões de dólares e o segundo cerca de 52 mil milhões de dólares, segundo um relatório da OMC. Segundo o Eurostat, o volume dos serviços jurídicos, subiu para mais de 404 mil milhões de euros na Europa a 27.
A Directiva dos Serviços (2006/123/CE), mantendo embora o essencial do edifício de cada um dos estados, deixou um caminho claro e inequívoco para a reformatação do mercado e para a criação de um novo paradigma do sistema jurídico e da prestação de serviços jurídicos, de que encontramos já sinais expressivos com o Legal Service Bill no Reino Unido e com a admissão da constituição de empresas multidisciplinares em Espanha.
Toda esta descaracterização das áreas jurídicas no sentido da normalização e da redução das margens interpretativas (a que não pode deixar de associar-se o emprobrecimento trazido à formação dos juristas pelo processo de Bolonha) não passa, a meu ver, de um jogo adequado à criação de condições para a partilha do mercado pelas grandes companhias internacionais.
São conhecidas, a propósito, as discussões e as exigências que se vêm fazendo nos fori da Organização Mundial do Comércio. A polémica já vem do Uruguai Round (ver exemplo) e, apesar das pressões das organizações de advogados, está a ser resolvida, discretamente no sentido contrário ao dos seus interesses.
O mercado dos serviços jurídicos só é interessante na perspectiva das grandes companhias que o disputarão a nivel mundial, se se avançar para uma progressiva normalização e para uma progressiva desjurisdicionalização nos grandes espaços e é isso que está a acontecer na Europa.
É neste quadro que é preciso compreender as mudanças e, especialmente, a sua faceta política.
Um grande negócio a privatizar
Dentro de alguns anos nenhum governo da Europa terá acções de companhias para privatizar. Mas, com algum jeito, com a apropriação que vem fazendo e a reformatação que vem realizando nalguns serviços públicos que já existiam e a que agora foi dada uma máscara mais próxima das entidades privadas, o Governo avança para a criação de estruturas privatizáveis por elevado valor.
Afinal, o Estado tem nas mãos todos os ingredientes para dar certo, a começar pela sua própria incapacidade para gerir, que constitui o melhor argumento para as privatizações.
Do outro lado tem a gula das grandes companhias que se perfilarão para a partilha do mercado e um exército industrial de reserva que permitirá ter operários qualificados a baixo preço.
O escândalo do estágio dos advogados
No seu estertor, a Ordem dos Advogados - que nenhum sentido terá no quadro do novo modelo que se anuncia - mantém um sistema de estágio obsoleto e cria dificuldades à inserção dos jovens advogados na vida activa.
O estágio da advocacia - que ninguém da minha geração fez nos termos agora vigentes - passará a durar 30 meses, seis meses dos quais com aulas teóricas cujas matérias são a repetição do que os licenciados aprenderam nas faculdades de direito, porém em mau vernáculo, porque não são proferidas por académicos.
Alega-se que é importante a «formação teórico-prática» e que tais aulas se destinam a fazer um interface entre a Universidade e a advocacia, ensinando-se aos formandos algumas técnicas que não tiveram a oportunidade de aprender durante os seus estudos.
Pela experiência que tenho, não vejo nenhuma utilidade em tais lições e casos há até em que fui obrigado a contradizê-las, porque delas houveram os meus estagiários informações técnicas que reputo erradas.
Essa parte teórica do estágio mais não serve do que de cabide de emprego para advogados que, não tendo trabalho profissional em excesso, conseguem arranjar tempo para dar aulas, o que, desde logo, é um mau presságio para os formandos.
Muito grave é que ninguém se preocupe com a efectiva inserção dos jovens licenciados em escritórios de advogados, permitindo-lhes um trabalho efectivo (ou pelo menos a investigação) em áreas novas em que é possível criar valor e que se arrastem essas criaturas, durante dois anos e meio, pelas ruas da amargura que, se não tiverem azar, lhes permitirão ter uma cédula profissional que não vale rigorosamente nada.
Um quadro desolador num ambiente de manifesto estrangulamento da concorrência
Para os jovens licenciados em direito as perspectivas da advocacia traçam-se num quadro absolutamente desolador, que começa precisamente com esse longo período de estágio e com a incerteza dos resultados em exames, que, por mais sabedores que sejam, são arriscados, porque realizados por quem não tem competências académicas para tal.
Como pode um simples licenciado avaliar outro, que até, na generalidade dos casos, tem sobre as matérias uma formação doutrinária mais moderna e mais evoluida?
Como pode, de outro lado, aceitar-se que os membros de uma corporação profissional bloqueiem o acesso dos seus candidatos a concorrentes à profissão?
Nesta matéria estamos, obviamente, no domínio do paradoxo... Mas não apenas nessa...
O tal jovem que acaba o estágio e que pode ser um excelente profissional, embora jovem, não tem a mínima hipótese de oferecer os seus serviços no mercado, porque isso lhe é proibido por uma lei retrógada que protege o compadrio na contratação de serviços jurídicos.
E absolutamente intolerável que esse jovem não possa dirigir uma carta a anunciar que lhe foi atribuida uma cédula profissional e a oferecer os seus serviços ao banco X ou à Empresa Y.

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