29 janeiro 2008

O retrato da crise segundo António Marinho Pinto

É memorável e merece citação integral o discurso do bastonário António Marinho Pinto, na tradicional abertura do ano judicial...
Aqui fica.
Exmo. Senhor Presidente da República
Excelências:
Vivemos talvez a maior crise de sempre na Justiça portuguesa.
Mas mesmo assim, em nome dos Advogados Portugueses, quero começar por exprimir um sentimento de confiança e de esperança.
É possível melhorar a administração da Justiça e fazê-lo em respeito pelos valores do Estado de Direito e em benefício dos cidadãos e do desenvolvimento do país. Num Estado de Direito Democrático a Justiça não tem donos, tem servidores.
Todos somos servidores da justiça e todos devemos servi-la com dedicação e empenho. A primeira obrigação de quem participa na administração da justiça é pugnar pelo seu prestígio e pela sua dignificação.
E a primeira condição para que a justiça seja respeitada numa sociedade democrática é que os seus agentes se respeitem reciprocamente.
Ninguém respeitará a justiça se os seus agentes não se respeitarem uns aos outros. Nunca teremos uma boa administração da justiça, que é um valor superior do Estado de Direito, se não contribuirmos para a dignificação das diferentes funções em que essa administração se exprime: a função jurisdicional (de dizer o direito para o caso concreto) cometida aos juízes; a função de representação da República (como garante da legalidade e dos interesses punitivos do Estado) cometida aos Advogados da República que são os Procuradores da República e a função do patrocínio forense (representação dos cidadãos em juízo) cometida aos Procuradores dos Cidadãos que são os Advogados.
A justiça atravessa hoje em Portugal momentos particularmente agitados que são a evidência de uma crise profunda, sem dúvida a mais grave desde a instauração da República.
As suas causas têm sobretudo a ver com a incapacidade de se realizarem reformas que a adaptassem às necessidades da sociedade e às exigências do desenvolvimento.
O modelo judiciário ficou imóvel perante as mudanças do século XX e sobretudo perante as transformações democráticas, económicas e sociais decorrentes da Revolução do 25 de Abril de 1974.
Na sequência dessas transformações fizeram-se leis progressistas e generosas em matéria de direitos e garantias individuais, de entre as quais emerge, naturalmente, a Constituição da República Portuguesa, mas as suas concretas aplicações esbarraram sempre com o imobilismo do sistema e sobretudo com a incapacidade deste em assimilar o sentido progressista e humanitário dessas leis. As consequências estão à vista.
As nossas cadeias estão cheias de pessoas oriundas principalmente dos sectores mais desfavorecidos da população.
Temos uma das mais elevadas taxas de reclusão de toda a Europa senão mesmo a mais elevada. A pobreza e a exclusão social são as principais causas dessa triste realidade.
No decurso da minha actividade humanitária, encontrei nas cadeias portuguesas, pessoas que cumprem penas de dias de prisão. Sim, penas de dias de prisão, unicamente porque não têm recursos económicos para pagar a multa que substituiria essas penas. E como não têm dinheiro pagam-nas com a liberdade.
Um homem ainda jovem cumpriu no Estabelecimento Prisional Regional de Coimbra uma pena de 13 dias de prisão, enquanto no Estabelecimento Prisional de Tires uma jovem de 19 anos cumpriria uma pena de 72 dias se as outras reclusas, alguns funcionários e uma associação humanitária não se tivessem quotizado para pagar a multa de cerca de 400 euros a que fora condenada pelo crime de viajar no Metro sem bilhete.
Encontrei também a cumprir uma pena de prisão, um octogenário que já mal se podia deslocar e que só com o auxílio de outros reclusos conseguia praticar os actos da sua higiene pessoal. Portugal aplica as maiores penas de prisão efectiva de entre os países da Europa Ocidental e também as penas mais curtas.
O tempo médio de prisão efectiva por cada recluso corresponde a mais do triplo do daqueles países, incluindo alguns que aplicam a pena de prisão perpétua.
Há jovens na casa dos 20 anos de idade condenados a penas de 15 e 16 anos de prisão por crimes de furto – unicamente furtos.
Há reclusos que cumprem penas de cerca de 20 anos de prisão condenados em cúmulo jurídico por múltiplos delitos contra o património os mais graves dos quais são punidos abstractamente com penas máximas não superiores a três anos.
No interior de algumas cadeias, os regulamentos do sistema penitenciário e os despachos de quem o dirige sobrepõem-se às Leis da República, designadamente a Constituição.
As preocupações de segurança misturam-se com as questões disciplinares fazendo com que os reclusos estejam submetidos a um regime arbitrário e, em muitos casos, sem qualquer controlo jurisdicional. A violência e a desumanidade tornaram insuportável o cumprimento das penas de prisão e o desespero conduz muitas vezes ao suicídio.
Morre-se demais nas cadeias portuguesas. A última solução para conter esse estado de coisas dentro de limites aceitáveis foi a de fechar os olhos ao consumo de drogas por parte dos reclusos, como forma de tornar mais suportável o inferno a que foram condenados.
É necessário, é urgente jurisdicionalizar integralmente o processo de execução de penas, ampliando a intervenção do Juiz e do Ministério Público e tornando obrigatória a presença do Advogado em todos os actos e diligências de que resultem decisões sobre os reclusos.
Exmo. Senhor Presidente da República
Excelências
Há um sentimento generalizado na sociedade portuguesa de que o sistema judicial é forte e severo com os fracos e fraco, muito fraco e permissivo com os fortes. A situação que descrevi em relação às cadeias contrasta flagrantemente com uma criminalidade de colarinho branco que se pratica quase impunemente na sociedade portuguesa.
Vemos em outros países, como os EUA, p. e., pessoas social e economicamente poderosas serem presas, julgadas e condenadas a pesadas penas de prisão por crimes económicos, tudo isso em períodos de tempo razoavelmente curtos, enquanto em Portugal, pelos mesmos factos ou por outros ainda mais graves, nada acontece a quem os pratica.
E quando são «incomodados» pela justiça os respectivos processos nunca acabam ou então terminam sem resultados visíveis.
No domínio da investigação criminal, fazem-se grandes encenações mediáticas para os órgãos de informação, por vezes com prisões e buscas filmadas pelas TV’s, mas depois os inquéritos (cujo prazo máximo é de 12 meses) prolongam-se durante anos sem quaisquer consequências dissuasoras para esses delinquentes.
Fazem-se negócios de milhões com o estado, tendo por objecto bens do património público, quase sempre com o mesmo restrito conjunto de pessoas e grupos económicos privilegiados.
E muitas pessoas que actuam em nome do Estado e cuja principal função seria acautelar os interesses públicos, acabam mais tarde por trabalhar para as empresas ou grupos que beneficiaram com esses negócios.
Há pessoas que acumularam grandes patrimónios pessoais no exercício de funções públicas ou em simultâneo com actividades privadas, sem que nunca se soubesse a verdadeira origem do enriquecimento.
Nas empresas que prestam serviços públicos de grande relevância social, como, nas comunicações postais, no sector das energias e no das telecomunicações, entre outros, perdeu-se há muito o sentido de servir o público em benefício de estratégias que privilegiam, à outrance, vantagens para os accionistas.
Agora o interesse público relacionado com as necessidades sociais desses serviços deve ceder - e cede mesmo - perante os sacrossantos interesses dos sacrossantos accionistas.
Como, ainda recentemente, salientou o antigo Presidente da República, Dr. Mário Soares, existe, hoje, na sociedade portuguesa um sentimento generalizado de desaparecimento do estado em benefício de interesses privados, situação que atingiu a própria justiça com o processo de desjudicialização em curso.
Bens essenciais para a população, cuja prestação constitui uma obrigação constitucional do Estado, como a saúde, são objecto de lucrativos negócios de grupos económicos privados.
Amplos sectores da população empobrecem e endividam-se incentivada por compulsivas torrentes de publicidade comercial apelando ao consumismo, sem que o estado exerça qualquer intervenção moderadora.
O sobre-endividamento colectivo levou a que grande parte da população activa tenha de trabalhar durante anos para pagar os encargos financeiros de empréstimos que foram induzidos a contrair sem os devidos esclarecimentos sobre as nefastas consequências desses compromissos.
Grande parte do país – pessoas e empresas - trabalha para os bancos que acumulam lucros tão escandalosos quanto os benefícios fiscais de que gozam. Enquanto isso, um grupo restrito de privilegiados, do sector público e do privado, aufere remunerações principescas e aumenta constantemente o seu património pessoal.
Os titulares de alguns serviços e instituições públicas auferem, em Portugal (que é um dos países mais pobre e atrasado da União Europeia), remunerações superiores às dos seus congéneres de outros países bem mais ricos e desenvolvidos.
E mesmo no sector privado as remunerações dos seus gestores tornaram-se tão contrastantes com as da generalidade dos trabalhadores que o próprio Senhor Presidente da República as denunciou em recente comunicação ao país.
Há em Portugal algumas das mais altas e das mais baixas remunerações pelo trabalho da União Europeia. Também aqui temos um país de extremos, tal como sucede com a duração das penas de prisão.
O Estado já não pode aumentar os seus recursos devido à sobrecarga de impostos, mas, mesmo assim, gasta o que tem e o que não tem em realizações e empreendimentos, alguns de duvidosa necessidade, cujos encargos, em muitos casos, irão ser pagos com os impostos de pessoas que ainda nem nasceram.
É essa a herança que vamos deixar às gerações futuras: dívidas. Há uma pobreza que alastra a olhos vistos e outra que cresce ocultada pela vergonha dos que a sofrem. É urgente que os principais partidos políticos estabeleçam entre si um pacto contra a pobreza e contra o sobre-endividamento da população.
Um acordo de incidência politico-económica que elimine essa chaga social. Não nos devemos resignar a esperar que o combate à pobreza se faça com o desenvolvimento económico. Temos de ter a audácia de inverter o paradigma e proclamar que o combate sério à pobreza é, em si mesmo, um factor decisivo do próprio desenvolvimento.
Existe na sociedade portuguesa um sentimento generalizado de que a corrupção e o tráfico de influências - dois dos delitos que mais ferem o Estado de Direito – se entranharam nas estruturas do Estado.
Não há uma obra pública, seja qual for o seu valor, que seja paga, a final, pelo preço por que foi adjudicada. É sempre superior.
As contrapartidas por vultuosas aquisições de bens e equipamentos por parte do estado, não são cumpridas ou são-no apenas em ínfimas parcelas. E o financiamento dos partidos políticos continua sem dar sinais de transparência democrática.
A Assembleia da República – a Casa da nossa Democracia, o Coração do nosso Estado de Direito – degrada-se com a insuportável teatralização e a falta de autenticidade dos seus debates públicos, enquanto nos seus gabinetes e corredores circulam interesses de duvidosa legitimidade, envoltos em opacidade e mistério e que não raro se traduzem em opções legislativas que ninguém compreende e ninguém esclarece.
Nunca se percebeu, nem ainda ninguém tentou explicar, por que é que a última lei de amnistia e perdão de penas perdoou parte das penas por crimes de abuso sexual de menores e já não o fez em relação a outros delitos bem menos graves.
E sobretudo nunca ninguém soube por que é que o âmbito de aplicação material dessa lei, na versão aprovada na Assembleia da República e publicada no respectivo órgão oficial, era diferente do da versão que acabou por ser promulgada e publicada no Diário da República.
Isto para não falar em opções normativas mais recentes que também nunca ninguém explicou e cuja paternidade ainda ninguém assumiu.
É este um dos motivos da perda de prestígio e de credibilidade política do nosso Parlamento: muito espectáculo no hemicírculo e muita falta de transparência na elaboração de algumas leis. É necessário que se estabeleça rapidamente a impossibilidade legal de um deputado exercer simultaneamente uma actividade privada directamente ligada a interesses na aplicação das leis. Não se deve poder acumular a função de Deputado com o exercício da actividade de Advogado. Quem faz leis no Parlamento não pode estar ao mesmo tempo a aplica-las nos tribunais.
Quem faz leis não pode ter clientes privados eventualmente interessados nessas leis, pois senão pairará sempre a suspeita legítima de que muitas delas possam estar mais voltadas para os interesses dos clientes de alguns dos legisladores do que para o interesse público e o bem comum.
O estabelecimento desta exigência corresponde não só aos imperativos da ética política republicana e aos princípios de transparência dos processos legislativos, mas também, no que aos Advogados se refere, a uma exigência de respeito pelas regras da sã concorrência. Há, obviamente, clientes privados que sempre preferirão advogados que sejam simultaneamente deputados.
Exmo. Senhor Presidente da República
Excelências
Uma última palavra sobre a Justiça e o sistema judicial.
Num país onde a justiça funcione mal, nada funcionará bem. E a justiça em Portugal funciona muito mal. E mais do que procurar culpados, é dever de todos nós encontrar soluções. Como já disse atrás, o sistema judicial não acompanhou as transformações do século XX e não se adaptou às necessidades do desenvolvimento. Por isso hoje, para que ainda continue a funcionar minimamente, o poder político não encontrou outra solução que não a de desjudicializar um amplo segmento da justiça e encarecer brutalmente o seu custo para os cidadãos.
As leis processuais e substantivas mudam ao sabor dos ciclos eleitorais e dos interesses políticos dos partidos maioritários.
A jurisprudência é volátil e não se consolida. Importantes sectores da justiça foram pura e simplesmente privatizados como aconteceu com a acção executiva, em que o Estado entregou a agentes privados a execução das decisões soberanas dos seus tribunais, com as nefastas consequências que todos conhecemos.
Um conjunto muito amplo de litígios civis e criminais foram remetidos compulsoriamente para centros de mediação, quando não para repartições públicas ou mesmo para empresas privadas. As dívidas já não se cobram nos tribunais mas sim com recurso a empresas privadas ou então através de métodos criminosos.
Mais de uma dezena de pessoas, contabilizada em meados de 2007, cumpria penas de prisão por tentar cobrar dívidas à força, ou seja, sequestrando os devedores, espancando-os, lesando o seu património, ameaçando-os ou mesmo atentando contra a suas vidas.
A desjudicialização da justiça constitui um perigoso retrocesso civilizacional, pois conduz, necessariamente, a que muitos sejam tentados a fazê-la pelas próprias mãos. Nesta matéria, há sinais muito perigosos no horizonte.
Os tribunais, enquanto instrumentos e símbolos da soberania para a pacificação social, deixaram de cumprir a sua função tradicional.
Agora o grande objectivo é descongestionar, é aliviar, é desjudicializar. Florescem as mediações privadas cuja finalidade é o lucro.
Os cidadãos mais carenciados estão totalmente desprotegidos porque o estado não lhes garante o acesso ao direito.
O patrocínio oficioso dos cidadãos mais pobres torna-se completamente impossível, devido ao desinvestimento do Estado.
O apoio judiciário, constitucionalmente consagrado como uma garantia de os cidadãos acederem ao direito e à justiça, foi recentemente ridicularizado por um diploma legal que inutiliza esse direito constitucional, ofende a dignidade dos Advogados e desprestigia o próprio Estado de Direito.
As opções contidas no chamado novo Mapa Judiciário oneram os cidadãos em benefício das comodidades dos agentes da Justiça. Prevê-se que a justiça seja concentrada em grandes centros urbanos, o que, muitas vezes, obrigará os interessados a percorrem centenas de quilómetros para uma diligência judicial.
Por outro lado, para dirigir esses gigantescos tribunais, quer-se optar por modelos de gestão autocráticos e que já deram provas de funcionar muito mal. É preciso que os tribunais funcionem e se organizem em função dos direitos e necessidades dos cidadãos e não apenas das comodidades e interesses de quem neles trabalha.
Deve, assim, optar-se por um modelo de gestão democrática assente em órgãos colectivos que incluam a participação de Advogados, enquanto representantes dos cidadãos que têm de ir a tribunal. Não pode deixar de ser assim.
Os Advogados, enquanto detentores da função constitucional do patrocínio forense, têm cada vez mais dificuldades em exercer essa missão, sobretudo em processo penal. Entra-se numa sala de audiências e quase não se distingue o juiz que julga do Procurador que acusa. Uns e outros estão lado a lado como se fossem uma mesma entidade.
Em muitos casos os procuradores agem de forma tão irresponsável e tão independente como se fossem juízes e, pior do que isso, em muitos outros casos, juízes há que actuam como se fossem procuradores.
Alguns julgadores reivindicam publicamente alterações legislativas que lhes permitam condenar arguidos com base em provas que não foram produzidas diante deles próprios, segundo os princípios da imediação e do contraditório, mas sim perante outros magistrados, em outras fases processuais.
Uma singular conjugação de circunstâncias adversas impede muitos advogados de exercerem cabalmente a sua função constitucional.
Alterações legislativas recentes dispensam-nos como se fossem desnecessários à justiça, deixando desprotegidos os cidadãos, sobretudo os mais frágeis do ponto de vista económico e cultural.
Muitos magistrados não respeitam as prerrogativas legais e constitucionais dos Advogados, e condenam-nos em pesadas taxas de justiça por actos processuais praticados no exercício do patrocínio em representação e no interesse exclusivo dos seus constituintes.
Já se chegou ao ponto de deter uma advogada em pleno tribunal onde se encontrava para uma audiência de julgamento na companhia dos seus clientes, unicamente para que fosse presente, sob detenção, a uma diligência a que tinha faltado com uma justificação que antecipadamente comunicara ao Tribunal.
Exmo. Senhor Presidente da República
Excelências
Apesar do cenário que acabo de descrever, concluo como comecei.
Vivemos, hoje, talvez, a maior crise de sempre na justiça portuguesa. Mas, apesar disso, quero aqui reiterar, em nome dos Advogados portugueses, uma forte mensagem de confiança e de esperança no futuro. É possível melhorar a administração da Justiça em Portugal. E se isso é possível então é obrigatório.
Lisboa, 29 de Janeiro de 2008
A. Marinho e Pinto

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