Um dos aspectos mais importantes da prática jurídico-forense é o do rigor processual.
É aí que, muitas vezes, se ganham e se perdem as acções e é por aí (tanto na denúncia como na exigência) que se afere, em boa medida, a competência dos advogados.
A lide é, por natureza, uma afirmação de exigência e de rigor, tanto no que respeita à forma como no que se refere ao conteúdo.
Isso é especialmente importante no processo criminal, onde um advogado que se preze, não permite que os magistrados ultrapassem a sua competência ou o que lhes é legalmente exigível.
Os advogados são julgados pelos seus próprios pares, em conselhos de disciplina cujos membros são eleitos e cuja legitimidade emerge precisamente da eleição.
Os advogados são julgados pelos seus próprios pares, em conselhos de disciplina cujos membros são eleitos e cuja legitimidade emerge precisamente da eleição.
O que está a acontecer é que, à margem dos conselhos, alguns relatores abdicam das suas funções e entregam os seus processos a outros advogados, que não foram eleitos e que, a troco de compensações em dinheiro, exercem, de facto, o poder disciplinar, organizando os processos, preparando projectos de acusação e projecto de decisão, que os demais, os do conselho de deontologia, assinam de cruz.
Reputo isso de uma extrema gravidade e por isso mesmo vou levar todos os casos que conheço desse tipo à barra dos tribunais.
Deixo aqui, para que se perceba a gravidade do que falo, as alegações do recurso que apresentei na semana passada:
Senhores Advogados
Senhores Membros do Conselho Superior da Ordem
Vem o presente recurso interposto de uma «decisão» do Conselho de Deontologia de Lisboa que condena o recorrente numa pena de advertência, em termos que o recorrente considera ofensivos e que, na modesta opinião, são ofensivos do bom nome e da dignidade da Ordem dos Advogados e exigem não só a correcção do julgado como a punição dos responsáveis pela decisão.
Dirijo-me a Vªs Exªs, em primeiro lugar, como Advogados, ciente de que estão todos conscientes dos seus deveres e estão todos apostados em honrar a profissão que abraçamos.
Só secundariamente me dirijo aos membros do Conselho Superior, consciente de que, se não se assumirem como Advogados, em vez de o superiorizarem o inferiorizam.
O que se passa neste processo é uma coisa gravíssima, não porque moleste o signatário – farto de processos disciplinares, todos eles por exercer com paixão a profissão de advogado – mas porque ofende, de forma gravíssima a Dignidade da Ordem (que, sendo uma construção do Estado – um ente corporativo, como já foi - deve, malgré tout, ser digna…) e, sobretudo, a dignidade e a ética da nossa profissão.
Penitencia-se o recorrente por, sua qualidade de elemento de júris de processos de agregação ter contribuído para o «chumbo» de candidatos que cometeram menos grosserias que as que foram cometidas neste processo disciplinar.
Nunca mais se perdoará por isso.
Escreve estas alegações «a quente» depois de, na manhã de 27 de Maio de 2008, ter consultado o processo disciplinar.
Apesar das suspeitas que pairam no ar, sobre a degradação do procedimento disciplinar na Ordem dos Advogados, não imaginava o recorrente que se havia descido tão baixo, pondo em causa, de forma quase absoluta, a dignidade dos procedimentos e o respeito que deveriam merecer os órgãos da Ordem.
O que faríamos nós, Senhores Advogados, se o Ministério Público ousasse fazer algo parecido?
Que crédito pode merecer a nossa Ordem se permitir que se generalize esta pouca vergonha, no plano disciplinar?
Como pode a Ordem cumprir o seu desígnio de cooperar para o progresso do direito se, na nossa própria casa, o despreza e os espezinha?
Que garantias podem ter os cidadãos, relativamente à defesa dos seus direitos quando membros de um órgão eleito como é o Conselho de Deontologia, pisam a pés, da forma mais desrespeitosa, regras básicas da nossa deontologia e da nossa arte?
Vejamos o que se passou nestes autos…
Da falsidade do acórdão condenatório
Consta de fls. 200 um documento que contém, a um tempo, um despacho datado de 3 de Dezembro de 2007 e um acórdão datado de 11 de Dezembro de 2007.
Espera o recorrente que a folha não seja substituída…
Este documento foi produzido informaticamente.
Trata-se, objectivamente, se um documento falso, com as consequências que derivam do artº 372º do Código Civil e do artº 255º e seguintes do Código Penal.
É por demais evidente que não é possível escrever, na mesma página, que é impressa de uma só vez, num mesmo momento, duas datas relativos a dois factos.
Ou seja:
A relatora do processo, Drª Paula Cabral - que se candidatou livremente a um cargo da Ordem e jurou desempenhar com zelo as suas funções, que é um membro eleito de um órgão da Ordem - proferiu, em 3 de Dezembro, um despacho e proferiu, ao mesmo tempo, o acórdão, datado de 11 de Dezembro, que foi assinado pelos do Conselho de Deontologia.
Ou é falsa a data aposta no despacho ou é falsa a data do acórdão, do que decorre, como consequência, a falsidade de todo o documento.
Mas nem sequer é isso o mais chocante…
Análise do processo
No dia 24/3/2004, o Bastonário José Miguel Júdice enviou presidente do Conselho de Deontologia uma participação que lhe foi apresentada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, protestando contra a contestação apresentada pelo recorrente, como advogado do funcionário Manuel Guilherme Ferreira de Melo, num processo disciplinar movido por aquele Ministério.
O Inspector Geral Diplomático e Consular, juntou um ofício da Srª Susana Baptista, que foi instrutora daquele processo e a contestação, de 99 páginas, relativamente à qual a referida funcionária se queixa.
De uma simples análise da contestação, pode concluir-se que o advogado usa uma linguagem dura mas não ofensiva.
Do que se trata é da defesa de um cidadão que era o Presidente da Federação da Suíça do Partido Socialista Português e de membro eleito do Conselho das Comunidades Portuguesas.
Do que se tratava era de tentar evitar a autêntica decapitação de um cidadão em razão do exercício das suas liberdades cívicas, nomeadamente da liberdade de expressão, constitucionalmente garantida, num quadro muito preciso: o referido cidadão era simultaneamente o Presidente da Federação do Partido Socialista na Suíça, membro eleito do Conselho das Comunidades Portuguesas e funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, aliás com excelente qualificação.
Por razões políticas, os responsáveis do Ministério dos Negócios Estrangeiros resolveram afastá-lo – e afastaram-no efectivamente – decretando a sua aposentação compulsiva, decisão de que pende recurso no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa.
O advogado recorrente, perante a evidência dos factos e convicção de que estava perante um caso de perseguição política notória – aliás reiterada, pois que já houvera um idêntico processo em tempo passado – minutou e apresentou a contestação constante dos autos, marcada por um estilo enérgico que se na altura se julgou adequado às defesa – e que hoje se considera demasiado brando, pois que, mesmo assim, a defesa não produziu efeito e o cliente do recorrente foi mesmo afastado do seu emprego, por razão estritamente políticas.
Tanto a relatora como o Conselho de Deontologia foram absolutamente insensíveis à problemática subjacente ao procedimento, estando o recorrente convencido de que nem sequer leram a peça processual que constitui o objecto da participação, muito menos tendo feito diligências adequadas a apurar o quadro em que a mesma foi apresentada.
Vejamos o que ocorreu nestes autos.
A fls. 107, os autos foram distribuídos como processo de apreciação liminar à Drª Paula Cabral, assinando o presidente do Conselho de Deontologia por chancela, pelo que suposto que nada teve a ver com a distribuição.
A fls. 107, a secretária-geral Ana Dias notificou o recorrente para se pronunciar sobre a participação, invocando, para tanto, uma deliberação do Conselho de Deontologia de Lisboa.
Vistos os autos, não se encontra aí nenhuma deliberação do Conselho, pelo que ou falta uma peça importante no processo – o que é grave – ou a referida Ana Dias elaborou, por sua alta recreação, um documento falso, abusando das suas funções.
Entre a distribuição de fls. 107 e a comunicação de fls 108, não há nenhuma deliberação do Conselho de Deontologia, não se encontrando qualquer deliberação que suporte a comunicação de 19/4/2004 em nenhuma parte do processo.
Só no dia 27 de Maio de 2008, por consulta do autos, se apercebeu o recorrente de que nada nos autos permitia à referida Ana Dias proceder à notificação a que procedeu, assinando-a pelo seu punho, como se estivesse disso incumbida por despacho proferido por entidade competente e invocando, para mais, uma deliberação do Conselho de Deontologia que, se existisse, teria que constar dos autos.
Quando recebeu a carta de notificação datada do dia 19/4/2004 e efectivamente entregue no seu escritório no dia 28/4/2004, o recorrente acreditou que, efectivamente, a referida Senhora, havia agido «em cumprimento de deliberação do Conselho de Deontologia de Lisboa», que haveria de estar, necessariamente, nos autos. E só por isso lhes respondeu
A verdade, que decorre dos autos, é que nenhuma deliberação existiu e que o recorrente só respondeu à referida notificação, em respeito para com o referido Conselho, cujo nome foi abusivamente invocado, o que é absolutamente intolerável.
A fls. 109, o ora recorrente apresentou a sua resposta, em que afirma que «a peça processual fala por si» pelo que se escusa de fazer comentários, deixando o assunto para a apreciação do Conselho.
A fls. 111 consta uma folha com uma proposta de instauração de processo disciplinar, no mesmo papel em que consta um acórdão pré elaborado, que foi assinado de cruz por três pessoas, com datas de 8 de Junho e de 15 de Junho, sendo esta, porém, manuscrita.
O acórdão não é fundamentado e nenhuma diligência foi feita no sentido de apurar a verdade dos factos.
Por carta de 7 de Julho de 2004, foi o recorrente notificado para, querendo, interpor recurso da decisão que ordenou que contra si fosse movido processo disciplinar. Nada disse, em coerência com o que já dissera.
O prazo para a apreciação liminar era de 10 dias, nos termos do Regulamento Disciplinar, aprovado pelo Conselho Superior em 10/10/2002. Foi largamento ultrapassado, com a agravante de, contra o sentido e a letra da lei nada ter sido feito em termos de apreciação liminar.
Não se compreende porquê, os autos foram redistribuídos a fls 117, sendo o despacho também assinado por chancela e sendo a redistribuição feita ao mesmo relator… No mínimo estranho…
A fls 121, vê-se nova redistribuição, à mesma relatora, em 16 de Fevereiro de 2005.
O processo ficou sem diligências até Setembro.
Sem que haja qualquer diligência e sem qualquer fundamento, a relatora pede a prorrogação do prazo de instrução, não se alcançando resposta para este pedido.
A fls 127, o recorrente foi notificado para se pronunciar sobre a participação.
Tinham passado dois anos, sem que tenha sido realizada qualquer diligência processual.
A fls. 131 figura um despacho em que a relatora diz que homologa, subscreve e dá por reproduzido um projecto de acusação contra o recorrente, que, porém, não se vê nem à frente nem atrás da decisão.
O mesmo despacho diz que o relatório deve ser incorporado nos autos, convertendo-se em despacho de acusação, o que significa que foi feito às margem do processo, pois que, se o não fosse, não carecia de incorporação.
Não se alcança como foi feito o «projecto de acusação» pois que, até ao momento em que foi proferido o despacho, não houve nenhuma diligência processual para apuramento da verdade.
A 1 de Setembro de 2006, verifica-se uma notificação assinada por Ana Dias, em que a mesma assina «pela vogal-relatora» sem que haja qualquer mandato ou qualquer incumbência para acto concreto, o que também não se compreende.
A lei não admite, em nenhuma circunstância, que o relator delegue os seus poderes ou coloque um funcionário a assinar por ele.
A 3 de Fevereiro de 2006 foi o advogado recorrente notificado para se pronunciar sobre a participação.
Tendo constatado a referência a um instrutor alheio ao Conselho de Deontologia, a fls. 137 veio o recorrente requerer que lhe notifiquem o despacho de nomeação de um instrutor, não havendo nenhum despacho sobre este requerimento.
Não há, outrossim, nenhum despacho do Conselho de Deontologia nomeando um instrutor, sendo certo que a existir tal despacho ele teria que constar dos autos.
Notificado para apresentar a sua defesa veio o recorrente dizer o seguinte:
Questões prévias
A participação que deu origem a este processo foi enviada pelo Sr. Bastonário ao ilustre Presidente do Conselho de Deontologia em 24/3/2004.
Em 28/4/2004 foi o signatário notificado de uma deliberação do Conselho de Deontologia, proferida no quadro do Procº nº 365/2004, para se pronunciar sobre a queixa.
Respondeu nos termos do Documento nº 1 ( que juntou) em 5 de Maio de 2004.
Por deliberação do Conselho Deontológico datada de 15 de Junho de 2004, foi determinada a abertura de processo disciplinar, nesse processo nº 365/2004.
O arguido foi notificado para os termos dos artºs 133º, 134 e 135 do Estatuto da Ordem dos Advogados pelo ofício nº 06196, de 7 de Julho de 2004.
Nunca foi deduzida acusação neste processo.
Nos termos do disposto no artº 121º,4 do E.O.A. a instrução não pode ultrapassar o prazo de 120 dias, prorrogável até 180 dias, em casos de especial complexidade.
Nenhum despacho prorrogou o prazo estabelecido no artº 121º,4, pelo que, salvo melhor opinião, caducou, há muito, o poder de deduzir acusação, que ao Conselho assiste.
Sendo certo que, estando os advogados obrigados ao bom cumprimento das leis, o estão, por maioria de razão os órgãos colectivos da sua Ordem, especialmente os que velam pelo cumprimento das normas deontológicas.
Em 15/2/2006 – quase dois anos depois - terá sido escrito o oficio nº 02779-681/D/2004, notificando o agora arguido para os termos do artº 121º,7 a 10 do Estatuto da Ordem dos Advogados, mas num outro processo, com o mesmo objecto.
Tal oficio foi enviado ao ora arguido, datado de 6/3/2006.
Contata-se que o presente processo, com o nº 681/D/2004 é uma réplica do Procº nº 365/2004, a que atrás aludimos.
Por aquele ofício era-lhe solicitado que se pronunciasse, em dez dias, quanto a matéria da participação, coisa que já havia sido feita no Procº Procº nº 365/2004, aliás pela mesma relatora, mais de dois anos antes.
Apesar de lhe parecer estranha a instauração de dois processos disciplinares com base na mesma participação (o oficio B/2004 do Sr. Bastonário, datado de 24/3/2004), entendeu o signatário nada dizer, porque o que pudesse dizer seguramente não agradaria a ninguém.
Para além do mais, estava o signatário ciente do disposto no artº 121º,7 do Estatuto que impõe a audição do arguido, o que lhe permitiria dar as explicações e clarificar as dúvidas que lhe acometiam o espírito.
Dispõe esse normativo que «na fase de instrução, o advogado arguido deve ser sempre ouvido sobre a matéria da participação».
Óbvio se torna que o Estatuto impõe a oralidade para a audição, porque não há audições por escrito, sendo que a audição a que se refere o artº 121º,7 nada tem a ver com a resposta, escrita, a que se refere o artº 23º do Regulamento Disciplinar.
Ficou, por isso, surpreendido pelo facto de ter sido deduzida contra si uma acusação no último dos processos gémeos.
Mas ficou sobretudo surpreendido com os termos da mesma.
Foi o signatário notificado de um «projecto de acusação», assinado por um advogado estranho ao processo e não nomeado para a prática de qualquer acto, como se verificou pela consulta dos autos, e de despacho de homologação elaborado pela adição de meia dúzia de palavras manuscritas num texto pré-elaborado.
Com todo o respeito por opinião diversa, não têm nem o «projecto» nem o «despacho» as condições mínimas de dignidade de que deve revestir-se uma acusação disciplinar contra um advogado.
O facto assume a maior gravidade por ser processado no quadro de um órgão a quem incumbe especialmente a verificação do cumprimento das normas deontológicas da advocacia.
O artº 76º,1 do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo Decreto-Lie n~84/84, de 16 de Março, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 80/2001, de 20 de Julho, vigente à data dos factos, estabelece que «o advogado deve, no exercício da profissão e fora dela, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes».
O nº 3 da mesma disposição dispõe que «o advogado cumprirá pontual e escrupulosamente os deveres consignados neste Estatuto e todos aqueles que a lei, usos, costumes e tradições lhe impõem para com outros advogados, a magistratura, os clientes e quais entidades públicas e privadas».
Todos os dias, na sua vida quotidiana, os advogados pugnam pelo rigoroso cumprimento das leis, na maioria das vezes com um zelo inexcedível, sobretudo nas áreas em que se debate a honra das pessoas e nas quais se afinam algumas das principais pedras de toque do Estado de Direito.
Não pode compreender-se e – muito menos se pode aceitar – que a nossa Ordem se envolva na praça pública, em sucessivos combates em defesa do Estado de Direito, quase todos eles marcados pela exigência de rigor, nomeadamente de rigor processual, e que, por dentro, se deixe minar pelo absoluto desrespeito das leis.
Perdoarão os ilustres Colegas, que integram o Conselho de Deontologia, a frontalidade das afirmações do signatário e a critica veemente (que envolve um protesto legítimo) que nesta peça se contém, relativamente a forma, sem dúvida ilegal, mas sobretudo indigna como foi tratado este processo disciplinar.
Damos de barato a clonagem dos processo, que é sintoma preocupante de uma crise a que urge pôr termo, porque ela afecta um pilar fundamental do Estado de Direito…
Não é preciso dizer mais nada sobre o que é chocante, pela natureza das coisas.
Fixemo-nos, apenas, por agora, no respeito pelos direitos de defesa, que deve ser apanágio de todos os advogados.
Os textos legais – tanto do Estatuto como do Regulamento Disciplinar – são claros e exigentes.
Prevê o artº 117º do Estatuto de 2001, aplicável ao caso, que o processo seja distribuído a um dos membros do conselho, admitindo o artº 119º que o conselho possa nomear como relator advogado inscrito nos respectivo distrito há mais de cinco anos.
Têm os advogados arguidos a garantia de que:
Os processos disciplinares serão conduzidos por um relator que ou é membro do conselho de deontologia eleito ou é por ele nomeado;
Os processos devem ser conduzidos pelo relator – e exclusivamente por ele - de forma séria e ponderada.
Acusar um colega não é – e não pode tolerar-se que alguma vez seja – uma banalidade.
Nem sequer é uma banalidade a simples abertura de um processo disciplinar, já em si infamante.
Por isso, o Estatuto de 1984/2001[1] impunha a apreciação preliminar (artº 118º) para a aferição da possibilidade de a conduta do advogado participado poder constituir infracção disciplinar.
Tal apreciação era, no espírito da lei, uma coisa séria, sujeita a uma especial ponderação e era obrigatória neste processo, por força do disposto no artº 205º do actual Estatuto.
Tinha essa norma, segundo a anotação de ANTÓNIO ARNAULT, o fim de «evitar ao advogado o vexame da instauração do processo disciplinar, quando for manifesto que a sua conduta não constitui falta deontológica».
Nestes casos gémeos não houve nem apreciação preliminar, que possa qualificar-se como tal, nem instrução.
Como não há, agora, acusação que possa merecer essa qualificação em conformidade com a lei.
De um lado, não foi feita nenhuma diligência instrutória, nem sequer a audição do arguido.
De outro lado, o despacho de acusação não respeita as formalidades legais.
O despacho de acusação tem que ser elaborado pelo relator, não admitindo a lei que seja uma mera remissão para um projecto de acusação elaborado por terceira pessoa, alheia ao processo.
O despacho de acusação deve ser o culminar da actividade investigatória do relator e não uma homologação de projectos de terceira pessoa.
O despacho de acusação não pode deixar de conter, sob pena de nulidade insanável, todos os elementos constantes do artº 123º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Não é só o Estatuto que o determina.
É o próprio Regulamento Disciplinar que dispõe expressamente que «o relator redigirá a acusação, observando-se o artº 123º do Estatuto».
Não pode o relator, à luz desta disposição, mandar redigir a acusação a terceiros.
E bem se compreende que assim seja.
É que a dedução de acusação implica uma responsabilidade da parte do relator, à qual ele não deve poder fugir, como não foge se estiver obrigado a redigi-la, assumindo cada palavra, cada vírgula, cada imputação.
A redacção da acusação implica que o relator se assuma como acusador, em todos os planos, nomeadamente no plano pessoal, até porque, pelo facto de ser relator ele não está desobrigado do respeito pelo Estatuto e, nomeadamente, dos deveres de serviço de servir a justiça e o direito (artº 76º), de pugnar pela boa aplicação das leis (artº 78º, al. b) e de proceder para com os colegas com a maior correcção (artº 86º,1, al. a).
A leitura do artº 123º do Estatuto e do artº 47º do Regulamento Disciplinar bem como a remissão expressa para o Código de Processo Penal como fonte com recurso à qual se hão-de resolver as questões processuais sobre as quais o regulamento seja omisso, impõem, ainda, outras considerações.
A acusação deve descrever rigorosamente as condutas integradoras das infracções que considere provadas, o que supõe de uma lado uma descrição rigorosa dos factos e a sua subsunção aos tipos legais das infrações para que remete.
Como já decidiu o Tribunal Constitucional, devem ser descritos na acusação e aí devidamente discriminados todos os factos relevantes para a incriminação.
Daí que não possa aceitar-se, por manifestamente ilegal, a acusação por mera remissão.
Com todo o respeito por opinião diversa, o despacho de acusação é nulo, não podendo produzir nenhum efeito.
Ou teríamos que concluir, a entender-se o inverso, que andamos a enganar os jovens advogados que formamos (ao ponto de os reprovar nos exames por asneiras deste tipo) e que somos, nos tribunais, actores de uma enorme hipocrisia, aos sustentarmos o rigoroso cumprimento das leis, que parece que não aceitamos na nossa própria casa.
Esgotam-se, assim, as questões prévias:
A deduzir-se acusação ela teria que ser deduzida no primeiro dos processos e em tempo, não podendo sê-lo naquele, por manifesta caducidade, nem no último onde o foi, por estarmos perante inequívoca situação de litispendência, que implica a extinção do segundo dos procedimentos.
Mesmo neste último, não há acusação, porque o relator a não redigiu em conformidade com as leis a que a mesma está vinculada;
A entender-se que o que foi notificado ao arguido constitui uma acusação, forçoso é concluir que ela é nula, por ofender directamente a lei.
Da matéria substantiva
A matéria objecto da participação corresponde, no essencial, ao conteúdo de uma das muitas peças processuais relacionadas como o «Caso Manuel de Melo».
Uma das mais importâncias exigências da nossa deontologia é , que é suposto ser respeitador das leis e dos princípios informadores do progresso do Direito, relativamente aos quais a Ordem dos Advogados têm atribuições especialíssimas.
Manuel Guilherme Ferreira de Melo é, ainda hoje, o presidente da Federação do Partido Socialista na Suiça e um militante activo nos círculos da emigração.
Teve um papel especialmente activo na luta pela defesa dos direitos das crianças luso-descendentes que a administração suíça pretendia colocar em escolas para deficientes.
Foi – e é ainda – membro do Conselho das Comunidades Portuguesas.
Ao longo de vários anos foi vítima de perseguições políticas intensas, que culminaram com a aposentação compulsiva, em consequência do processo disciplinar a que se reporta a peça constantes dos autos.
Os comportamentos considerados censuráveis pela participante são, todos eles, qualificáveis como actos de cidadania política, protegidos pelo regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias.
Este processo é, manifestamente, um processo de perseguição política, muito complexo e indefensável sem recurso a uma linguagem firme e veemente.
As citações feitas pelo projectista da acusação não podem ler-se de forma descontextualizada, porque têm um sentido próprio no enquadramento que têm na peça de onde foram retiradas.
De qualquer modo, nenhuma das afirmações viola o Estatuto.
Todas foram feitas no cumprimento esforça do artº 76º,1.
E nenhuma viola a lei nem os bons costumes e tradições da advocacia portuguesa.
Violaria o advogado os seus deveres se perante as enormidades a que foi sujeito o seu constituinte, não tivesse reagido de forma veemente e forte.
Não violam tais afirmações o dever geral de urbanidade, a que se refere o artº 89º do Estatuto.
Em nenhuma das afirmações se põe em causa a personalidade concreta da Srª participante, mas apenas os seus métodos, os seus juízos e as ideias que exprimiu, em nossa opinião contrárias, em muitos pontos, às leis e ao ordenamento constitucional.
Ser urbano não significa – não pode significar – tolerar com delicadeza todas as enormidades, mesmo quando elas projectam atingir o cerne do regime constitucional democrático, como foi o caso.
Não há, no texto em causa, qualquer atentado à honra da participante.
Todavia, mesmo que a honra da dita tivesse sido beliscada pela defesa, como sustentam JORGE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, no douto parecer publicado na Revista da Ordem dos Advogados (ROA, 52-273) deve considerar-se excluída a responsabilidade penal dos atentados à honra sempre que eles resultem da realização da defesa de direitos.
Como entendem esses os ilustres mestres, os advogados gozam, neste quadro de uma verdadeira imunidade, porque as expressões necessárias à defesa do cliente estão a coberto de justificação bastante (ANTÓNIO ARNAULT, Estatuto da Ordem dos Advogados, Anotado, pag. 110).
O mesmo vale, por maioria de razão, para a responsabilidade disciplinar.
E dizemos por maioria de razão porque uma eventual censura disciplinar num processo desta natureza, haveria de constituir um ataque brutal (e de uma deslealdade intolerável) à própria defesa dos interesses confiados ao advogado.
Mais do que o efeito próprio da decisão disciplinar, uma censura do mandatário, redundaria num apoio à parte contrária, violador da obrigação de não ingerência que a Ordem deve assumir em toda a plenitude, a benefício da confiança que nela depositam os cidadãos.
Nesse sentido, este processo não passa de um golpe baixo da parte contrária, destinado a fragilizar a defesa confiada ao mandatário.
Veja-se, desde logo, o facto de a queixa ter sido enviada à Ordem dos Advogados não pela própria participante mas pela Inspecção Diplomática e Consular…
É que pende no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, 3ª UO, o Processo nº 2148/05.6BELSB, em que, para além do Estado, de dois ex-ministros dos Negócios Estrangeiros e do Inspector Diplomático e Consular, é R. a própria participante (junta-se cópia da petição inicial como Documento nº 2), pelo que, se se entendesse que é censurável a liberdade de patrocínio, haveríamos que concluir que é possível favorecer uma das partes, num processo de litigância dura como é este, por via da exploração do procedimento disciplinar.
Anota-se, finalmente, que o grosso das expressões que se pretendem transformar em objecto de censura constituem elementos de opinião política sobre o funcionamento dos serviços públicos e dos seus agentes, que cabem no quadro, incensurável, do artº 37º, 1 e 2 da Constituição.
Entende o arguido que os advogados estão obrigados a dar rigoroso cumprimento ao disposto no artº 85º do Estatuto da Ordem dos Advogados (anterior artº 76º) e orgulha-se de, ao longo de mais de 20 anos de profissão ter dado o seu contributo não só para a realização desse preceito como para o afastamento dos medos que outros plantam, sobretudo junto dos colegas mais jovens, instigando-os a uma prática castrada da advocacia, que desvaloriza as violações dos Direitos do Homem.
CONCLUINDO no que se refere à matéria substantiva, entende o arguido que não cometeu nenhuma infracção disciplinar.
Se de outro modo se entender ver-se-à o arguido forçado a concluir que não há condições de suficientes para o livre exercício da advocacia em Portugal e retirará disso as devidas consequências, em todos os planos.
Requer que se proceda a julgamento com audiência pública
Oferece as seguintes testemunhas:
1. MANUEL GUILHERME FERREIRA DE MELO, casado, funcionário público, com domicílio na Avenue du Bois-de-la-Chapelle, 15 Onex CH-12-13 Genève, Suiça
2. CARLOS MANUEL LUIS, residente na Rua Almeida e Sousa, 44-1ºA, 1350-014 Lisboa
3. JOSÉ MACHADO, com residência em 136 Rue Paul Éluard, 78130 Les Mureaux, France
Todos à matéria dos artºs 62º a 68º da defesa.
Apesar do teor da defesa que se reproduziu, que justificaria que a relatora apurasse a verdade do que se alegou, boa parte dela a ver com a própria tramitação do processo, apesar de terem sido arguidas nulidades, a relatora de nada conhecer nem sobre nada tomou posição.
A 20/12/2006, figura um despacho da relatora ordenando que se remetam os autos «ao Sr. Advogado instrutor» para inquirição de testemunhas.
Já se vira que não tinha sido nomeado nenhum advogado instrutor, o que justificou até que fosse requerida notificação do despacho que o nomeou, mas sobre tudo isso passou a relatora.
Até fls 174. não se encontra nos autos nenhum despacho de nomeação de advogado instrutor.
O despacho de 20/12/2006 é indiciário de que a relatora indigitada, que é membro eleito de um Conselho de Deontologia, se exonerou das suas obrigações, para, objectivamente, viabilizar um trabalho, que se julga ser remunerado de um outro advogado, agindo com manifesta fraude à lei, em cuja letra e espírito não está perspectivada a hipótese de o procedimento disciplinar poder ser objecto de um negócio ou se transformar num cabide de emprego.
É legítimo, até que se pergunte quando é que ganha o «instrutor» que não o é e que se exija que se apure se o que ganha o reparte com a relatora nomeada.
É que, na verdade, não faz sentido que alguém que se candidata a uma eleição, para um cargo não remunerado, mas que confere ao eleito importância social e importância no quadro da profissão, abdique, do poder de intervenção que lhe advém do sufrágio, a favor de um terceiro que não foi eleito, sem que disso lhe advenha nenhuma contrapartida económica.
O que é normal é que quem se candidata a eleições para os Conselhos de Deontologia o faça com um sincera vontade de contribuir para o aperfeiçoamento da justiça disciplinar e o aperfeiçoamento do direito.
Não se compreende – nem merece nenhuma justificação – que uma pessoa que se candidata a uma eleição para um Conselho de Deontologia e que é nomeada relatora não exerça as suas funções, limitando-se a pedir a um outro advogado, que não é membro do Conselho e que é remunerado, que faça diligências e apresente projectos. É, obviamente, legítimo que se questione se quem assim age não estará a repartir os resultados do negócio, obtendo com tal prática uma vantagem económica que não teriam enquanto simples membro do Conselho, pois que os relatores que integram estes órgãos não são pagos.
Mais grave do que isso é que o relator – na circunstância a relatora – tenha permitido todos os atropelos possíveis às leis, não tomando sequer conhecimento das arguições de nulidades apresentadas pela defesa e não tomando nenhuma posição sobre a exclusão de testemunhas feita pelo «instrutor».
Como se vê na peça reproduzida, o agora recorrente apresentou como testemunhas, para além do então deputado Dr. Carlos Luis, o ex-presidente do Conselho das Comunidades Portuguesas, José Machado e o próprio cliente, Manuel de Melo, este residente em Genebra e aquele residente em Paris.
Todos os factos relevantes, que são subjacentes à contestação subscrita pelo ora recorrente, ocorreram na Suíça ou em França, sendo natural que se apresentem como testemunhas pessoas que residente naqueles países.
Consta do processo uma cota informando que não foram notificadas as testemunhas Manuel de Melo e José Machado porque as mesmas têm residência na Suíça e em França .
Nunca foi o signatário notificado de tal decisão, sendo certo que, se o tivesse sido, tomaria a iniciativa de apresentar tais testemunhas.
A fls 180 foi ouvida a testemunha Carlos Luís, ex-deputado do PS eleito pela emigração que confirmou integralmente a veracidade do teor da defesa apresentada do ora recorrente afirmando expressamente que o assistido Manuel de Melo era vitima de uma perseguição política.
A única inquirição feita foi-o, aliás, de uma forma miserável e absolutamente censurável no plano deontológico. Mesmo que o instrutor tivesse sido regularmente nomeado – e não foi – deveria ter ouvido a testemunha à matéria para que foi indicada e não o foi.
Durante mais de dois anos, até fls 132, não foi realizada qualquer diligência que pudesse ser havida como uma diligência de instrução.
E de um momento para o outro, sem que houvesse qualquer vestígio nos autos de como isso possa ter ocorrido, apareceu um «projecto de acusação» vindo do exterior – e tudo indica que pago pela Ordem dos Advogados - que a relatora transformou, por um passo de mágica, em acusação e mandou incorporar no processo.
Tal projecto é assinado por (…) Miranda Baptista e tem a data de 15 de Maio de 2006.
A defesa foi apresentada a 26 de Setembro mas só foi junta, se o recorrente não se equivoca, a 10 de Outubro. E só em Dezembro foi proferido um despacho, ordenando que o processo fosse remetido ao «advogado instrutor» quando é certo que não existia nenhum advogado instrutor nomeado até essa data, sendo certo que até já tinha sido pedida certidão do despacho do conselho que houvesse, alegadamente, procedido a tal nomeação, sem que tivesse havido resposta.
Até fls 174, não há nenhuma nomeação de advogado instrutor.
Espantoso é que tenha feito um auto de não comparência para para dizer que as demais testemunhas arroladas não compareceram… porque não foram notificadas.
A seguir, novo despacho ordenando que os autos fossem remetidos ao putativo «instrutor» para que elaborasse o seu parecer, a segunda encomenda feita pela relatora.
Há a seguir uma cota em que se diz que foi elaborado parecer pelo «instrutor», sendo certo que nenhum parecer se encontra nos autos. Depois há um novo despacho da relatora, ordenando que se remetam os autos ao «instrutor» para elaborar «projecto de relatório final», ou seja a terceira encomenda.
Foi ao mesmo Miranda Baptista quem, sem legitimidade para tanto, tomou a decisão de não ouvir duas das testemunhas indicadas e foi ao mesmo que a relatora Paula Cabral «encomendou» um «projecto de relatório final».
A fls. 197 aparece uma cota do «instrutor» dizendo que juntou um anexo que não se encontra nos autos.
A fls. 200 há um despacho da relator dizendo que homologa, subscreve e dá por reproduzido o projecto de relatório final, o qual deverá ser incorporado nos autos. E, na mesma página, o acórdão do Conselho de Deontologia, condenando o arguido, com data de oito dias depois.
O «projecto de relatório final», datado de 23 de Agosto de 2007, a ser aceitável, deveria estar nos autos, para que a relatora pudesse homologá-lo, subscrevê-lo e dá-lo por reproduzido.
Trata-se de uma regra não só básica como elementar, pois que é na numeração mais baixa que está a garantia de que não estamos perante uma fraude, consistindo na junção de um documento depois da decisão. É elementar que quem dirige um processo só pode pronunciar-se sobre o que está nos autos.
Ou seja: nem a relatora podia pronunciar-se a fls. 200 sobre um relatório que se encontra a fls. 201, mas, sobretudo não podiam os do Conselho de Deontologia, que é um conselho, pronunciar-se sobre um documento que, claramente não estava nos autos.
Práticas deste tipo abandalham[2] de forma absolutamente intolerável um órgão que deve ter bom nome e ser respeitado como é o Conselho de Deontologia.
Como já se referiu, logo a abrir, o documento de fls 200 é, objectivamente um documento falso, a vários títulos.
Em primeiro lugar porque o despacho que assumiu o «projecto de relatório final» e o transformou, como se por um passe de mágica, em «relatório final» é datado de 3 de Dezembro de 2007, sendo certo que na mesma folha consta um Acórdão datado de 11 de Dezembro de 2007, não sendo possível processar o texto da mesma página, tal como o mesmo está configurado, em dias diferentes.
Em segundo lugar porque, como se vê da numeração das páginas não há relatório final antecedente, pois que o relatório final não existe e o projecto de relatório final que foi convertido em relatório final a fls. 200 está a fls. 201 e seguintes.
Ou seja: quando os do Conselho de Deontologia dizem se pronunciaram sobre «o relatório final antecedente» fizeram declarações falsas, pois que nenhum relatório final antecedente existia.
Por isso, o acórdão condenatório é falso e os que o subscreveram devem ser punidos disciplinar e criminalmente por isso.
Tendo sido, alegadamente, proferida a 11 de Dezembro de 2007, a decisão só foi notificada ao recorrente por carta datada d 14 de Janeiro, mas só enviada no dia 17 de Janeiro de 2008.
Do conteúdo da projecto de relatório final
O chamado «projecto de relatório final» é um texto execrável e sem a mínima consistência para a função que, supostamente, poderia desempenhar, se fosse dado aos relatores contratar serviços externos e encomendar projectos de decisões condenatórias.
Os Conselhos de Deontologia da Ordem dos Advogados integram-se na ordem constitucional da República. Não lhes é lícito censuras as palavras ou os discurso e, muito menos os termos usados pelos advogados.
Ora, o que o censor de serviço fez foi verberar palavras, sem dar a mínima atenção ao que o Estatuto e o Regulamento Disciplinar dispõem.
Se o censor de serviço pudesse até cortava a raiz do pensamento do recorrente.
Mas – como diz o ditado - «pela boca morre o peixe».
E o putativo instrutor escreve:
I – Insurge-se, depois, o Senhor Advogado, pelo facto de não ter sido ouvido, o que, na sua óptica, violaria o artº 121º do E.O.A. . Diferente é o nosso entendimento (ou seja o entendimento do putativo instrutor) na medida em que se nos afigura que a razão de ser de tal preceito é a de dar ao arguido a oportunidade de se pronunciar, o que não significa que tenha que ser oralmente.
Isto é, Senhores Conselheiros, o confisco do poder disciplinar e a destruição de uma lógica de poder disciplinar assente em órgãos colegiais cujos membros são eleitos.
Então um mercenário contratado incorpora-se no Conselho eleito e confisca-lhe a alma, sem que os verdadeiros eleitos digam alguma coisa?
Então destrói-se assim a lei, abrindo brechas no rigor que deve ter o tratamento do direito e colocando a Advocacia ao ridículo?
Então vamos todos tolerar a bandalheira da interpretação discricionária e vamos levar todos com estes exemplos na cara, quando exigirmos rigor nos Tribunais?
Alguém pode ser ouvido… por escrito? Imagine-se o que o Ministério Público poderia fazer na área do processo penal se levasse esta bandalheira para esse campo, em que todos lidamos diariamente…
Logo a seguir:
II - « Insurge-se, depois, o Senhor Advogadao Arguido com o factro de a acusação ter sido dada por um advogado estranho ao processo. Ora, sucede que os advogados instrutores, tal como o signatário, elaboram projectos de despacho que são ou não convertidos em despachos definitivos pelos Senhores Relatores.»
Está assim, confessado o delito.
A acusação foi dada por um advogado estranho ao processo e isso é absolutamente inadmissível.
Tanto o Estatuto da Ordem dos Advogados como a Regulamento disciplinar permitem que os Conselhos de Deontologia nomeiem como relatores outros advogados ou que solicitem a outros advogados que realizem diligências de instrução.
O que nem a lei nem o Regulamento permitem é que o Relator abdique da responsabilidade pessoal da instrução e encomende a terceiros projectos de acusação ou projectos de acórdão.
As vicissitudes do presente processo ocorreram sob dois distintos regimes jurídicos: o do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo DL nº 84/84, de 16 de Março e o do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro.
Porém, no que é essencial para este recurso, não houve mudanças substanciais na passagem de um regime para o outro.
Já na vigência do DL nº 84/84, o poder disciplinar em primeira instância era da competência de conselhos de deontologia, qualificados como órgãos da Ordem (artº 7º, 2, al. i)) cujos membros estavam sujeitos ao regime do artº 8º , ou seja : eram obrigatoriamente eleitos.
Nos termos do artº 97º, o procedimento disciplinar contra advogado é instaurado mediante decisão do conselho superior ou por deliberação deste ou do conselho de deontologia competente.
O processo tinha natureza secreta, nos termos do artº 99º , não podendo ser dado conhecimento do seu conteúdo a terceiros.
Os processos estavam sujeitos a distribuição aos membros eleitos do conselho de deontologia.
O artº 118º obrigava o relator a proceder a uma apreciação liminar, no sentido da aferir da possiblidade de a conduta do advogado participado poder constituir infracção disciplinar.
Este poder é um poder indelegável, que emerge precisamente do sufrágio que conferiu legitimidade ao membro eleito do conselho.
Se após a apreciação liminar o relator entendesse que haveria lugar a procedimento disciplinar deveria propô-lo ao conselho que, depois de decidir nesse sentido haveria de proceder nà distribuição do processo.
Estabelecia o artº 119º,4 que os conselhos podiam nomear relatores e cometer a instrução de processos a advogados inscritos no respectivo conselho há mais de cinco e sem qualquer punição disciplinar.
Mas da economia das normas, resulta com toda a clareza que o legislador pretendeu, com o modelo consagrado no Estatuto de 1984 que todo o poder disciplinar residisse em conselhos constituídos por membros eleitos, só excepcionalmente se admitindo que os conselheiros eleitos pudessem nomear relatores não eleitos ou cometer-lhes a instrução de processos.
E o que a lei, claramente não admite é que possa recorrer-se às nomeações de uns e de outros apenas para criar empregos ou adjudicar a mercenários a preparação de acusações ou de projectos de decisão contra os seus colegas, suportados com as receitas da Ordem de todos.
A dignidade dos conselhos de deontologia começa na própria eleição dos seus membros, para se prolongar, de forma muito veemente, na exigência de que sejam esses membros eleitos os condutores do processo disciplinar.
Dispunha o artº 121º, 1 que «compete ao relator regular o andamento da instrução do processo e manter a disciplina nos respectivos actos.»
Dispunha, a seguir, o artº 121º,4 que a instrução não poderá ultrapassar o prazo de 120 dias, contados a partir da data do despacho de designação do relator.
Só em casos de excepcional complexidade (e não é o caso) poderia o prazo ser prolongado, desde que, mediante pedido fundamentado ao conselho, este deliberasse autorizar a prorrogação do prazo, até um máximo de 180 dias.
O artº 121º, 7 impunha, de forma peremptória, que o advogado arguido fosse sempre ouvido sobre a matéria da participação. O uso da expressão «ouvido» significa, de forma inequívoca, que o relator estava obrigado, sob pena de nulidade, a ouvir, de vida voz, o arguido e não apenas a sugerir-lhe que se pronunciasse.
Na fase da instrução era, para além disso, garantida ao arguido a possibilidade de apresentar 3 testemunhas por cada facto e dez testemunhas no total.
Finda a instrução, estava o relator obrigado a proferir despacho de acusação ou a emitir parecer fundamentado em que conclua pelo arquivamento (artº 122º).
Sendo proferida acusação, exigia o artº 123º que ela revestisse a forma articulada e especificasse a identidade do arguido, os factos imputados e as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os mesmos foram praticados, as normas legais e regulamentares infringidas, devendo ainda fazer-se alusão às penas aplicáveis em abstracto.
Proferida a acusação nesses termos, era dela notificado o arguido, pessoalmente ou por via postal, informando-se o mesmo de que o seu julgamento poderia ser público, caso o requeira.
Cumprido o disposto nos artº s 126º e 127º, dada nova oportunidade ao arguido para oferecer novas provas, eram realizadas novas diligência probatórias, no prazo máximo de 60 dias, após o que o relator estava obrigado a elaborar um relatório final, devidamente fundamentado, donde constem os factos apurados, a sua qualificação e gravidade, a pena que entende dever ser aplicada ou a proposta de arquivamento (artº 129º).
Depois disto deveria o processo ser entregue ao respectivo conselho, que procederia ao julgamento, com as formalidades do artº 130º do EOA.
O que se passou neste processo é gravíssimo. Temos um relator que, estando, por lei, obrigado a desenvolver as diligências necessárias à descoberta da verdade, nada fez e, para além disso, incumbiu um terceiro de realizar tarefas que só por si, ou por outro instrutor nomeado pelo Conselho, poderiam ser realizadas.
Temos, de outro lado, um advogado que, sabendo – como não podia deixar de saber – que não estava habilitado a realizar diligências de instrução, porque não foi nomeado relator pelo Conselho de Deontologia, aceitou fazê-las, num quadro de manifesta usurpção de funções e com a desfaçatez constante dos autos.
Temos, para além disso, as falsificações supra referidas.
E temos finalmente as próprias conclusões do putativo instrutor, elas próprias merecedoras de censura.
Diz o putativo instrutor:
«Os comportamentos que, no processo disciplinar, instaurados pelo MNE eram imputados ao aí arguido, eram, todos eles, actos qualificáveis como de cidadania política pelo que se compreende que o Senhor Advogado – ora Arguido – tenha usado de especial contundência na defesa do seu constituinte.
A testemunha arrolada pelo Senhor Advogado Arguido, sufragou, por inteiro, a posição deste, acrescentando que o Senhor Advogado é um profissional integro, que se revolta com as injustiças.
Entendo, contudo, que o Senhor Advgado arguidi, para elaborar a defesa do seu constituinte, não tinha necessidade de ofender a Instrutora do processo…»
Não diz, porém, o entendedor (que fala na primeira pessoa) o que é que pode ser considerado ofensivo da Instrutora, sendo certo que nenhum facto foi apontado que possa ser considerado ofensivo da dignidade da mesma.
Não se alcança, de outro lado em que é que a conduta do recorrente pode ser considerada violadora do dever geral contido no artº 76º,3 do EOA, uma vez que, ao contrário do relator e do putativo instrutor, o recorrente fez um uso correcto do processo e respeitou em tudo as boas regras da advocacia, não havendo nenhum facto que possa subsumir-se à violação de tal preceito.
Nem se entende, de outro lado, porque nada consta nem do projecto nem do acórdão, como pode considerar-se que o recorrente violou o dever geral de urbanidade, previsto no artº 89º do EOA, porque nenhum facto é invocado, que possa subsumir-se àquela disposição.
Este processo está eivado de irregularidades, consistindo a primeira e a mais grave na alienação pelo relator das funções e dos poderes que lhe cabiam no quadro do Estatuto da Ordem dos Advogados e na fraude à lei que consiste na encomenda dos actos de instrução e dos documentos que devem ser elaborados pelo relator a um terceiro, não eleito e, ao que parece, pago para exercer tais funções.
Do ponto de vista do recorrente o Conselho Superior qualificar-se-à si próprio se não tomar posição sobre o abandalhamento do procedimento disciplinar em que este tipo de procedimentos resulta.
Só por essa via – a da consideração dos próprios interesses da Ordem – será útil e interessante remexer neste processo, pois que a advertência é, para o aqui recorrente, apenas uma expressão do ridículo que neste processo se contém.
Só pode advertir quem tiver dignidade para advertir.
E o recorrente não reconhece tal dignidade nem ao putativo instrutor que, sendo advogado como é não deveria ter aceite as encomendas que lhe fizeram, por saber que elas eram ilegais e, muito menos, à relatora eleita que, com o seu comportamento omisso, desacreditou o Conselho de Deontologia e, salvo melhor opinião, entrou em áreas que são passíveis de procedimento disciplinar e, sobretudo, criminal.
No que se refere a este último aspecto, tomará o ora recorrente as iniciativas que entende dever tomar, deixando, desde já claro, que vai apresentar participações criminais contra os putativo instrutor, a relapsa relatora e os membros do Conselho de Deontologia que participaram na decisão.
No que se refere à matéria do presente processo e à reposição do crédito e do bom nome do Conselho de Deontologia, espera o recorrente que os Senhores Advogados do Conselho Superior, sem encobrimentos nem compadrios, zelem pelos interesses da Advocacia e da nossa Ordem e tomem posição sobre as questões acima suscitadas.
O Advogado recorrente
Miguel Reis
5066L
[1] Referência ao Decreto-Lei nº 84/84 de 16 de Março e à Lei nº 80/2001, de 20 de Julho
[2] Com o sentido encontrado em http://www.workpedia.com.br/48427/abandalhar.html
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