11 fevereiro 2010

A descaraterização do Estado de Direito

A DESCARATERIZAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO

A liberdade de imprensa é, a meu ver, um dos mais importantes esteios do Estado de Direito.

Nos estados modernos ela assenta, essencialmente, na liberdade de investigação jornalística e na liberdade de criação e expressão dos jornalistas que devem entender-se como liberdades instrumentais, de que é beneficiário o direito dos cidadãos à informação, garantido, no caso português, pela Constituição da República.

Há, naturalmente, limites à liberdade de criação e expressão dos jornalistas e esses limites situam-se nos princípios gerais do direito criminal, por um lado e nos deveres de rigor e objetividade da informação, a que os jornalistas estão obrigados para realizar aquele direito fundamental dos cidadãos, que é incompatível com a sonegação de informação.

Não deve entender-se que há sonegação de informação quando esta se refere a factos pessoais socialmente irrelevantes. E, por isso mesmo, na gestão dos seus direitos profissionais, estão os jornalistas obrigados a «parar» no justo limite do equilíbrio entre o interesse público da notícia e os direitos individuais das pessoas visadas.

O critério para essa reflexão tem que passar pela dicotomia entre o pacote dos elementos desnecessários para a melhoria do conhecimento público sobre determinada factologia e o pacote dos elementos relevantes para o seu esclarecimento.

Por isso mesmo, é pacífico, no plano da deontologia do jornalismo que o jornalista deve evitar a publicação de tudo o que se reduza ao mero sensacionalismo. Todavia, no mesmo plano, é inquestionável que, por maiores que sejam os riscos de ser incomodado, o jornalista deve publicar toda a informação a que tiver acesso e que seja socialmente relevante, sob pena se ter que se entender que ele viola a obrigação de não sonegação de informação.

Ouço na SIC-Notícias a informação de que um tribunal decretou o impedimento da publicação do jornal «Sol» porque o mesmo estaria para publicar novas notícias reproduzindo escutas judiciais, a pretexto de que estaria a violar o segredo de justiça.

Se isso for verdade é gravíssimo, porque estaremos perante um quadro de descaracterização do Estado de Direito, com um impacto brutal, muito mais grave do que o que ocorreu com o impedimento da publicação de um livro, como foi o de Gonçalo Amaral. Aí estava a apenas em causa o direito de expressão de opinião, todavia um direito fundamental, mas de muito menor relevância do que o direito a ser informado que, nas sociedades modernas passa pelo exercício do jornalismo, que dele é instrumental.

Dispunha o artº 371º do Código Penal, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 29/2007, de 4 de Setembro :

«Quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei do processo.»

Com tal conteúdo, a lei penal preservava e garantia do livre exercício da liberdade de imprensa e o direito dos cidadãos à informação, colocando o fulcro do segredo de justiça no local em que deve estar, que é o da própria justiça.

Durante a vigência dessa versão do artº 371º do Código Penal registaram-se inúmeras violações do segredo de justiça, não se conhecendo nenhum caso socialmente relevante de condenação por tal crime. Entendia-se, como se entendeu durante anos, que a investigação judiciária e a investigação jornalística tinham natureza completamente diversa e que o respeito pelo segredo de justiça implicava medidas no âmbito exclusivo dos tribunais, não podendo os jornalistas ser sancionados pelo uso legítimo das informações que recolhessem junto das entidades judiciárias, entendidas como fontes, protegidas pelo sigilo profissional, que é um dos esteios da liberdade de imprensa.

A Lei nº 29/2007, de 4 de Setembro, veio transformar os jornalistas em bodes expiatórios da violação do segredo de justiça ao alterar o referido artº 371º, que passou a ter a seguinte formulação:

«Quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo.»

Não se refere o dispositivo à penalização direta dos que, tendo acesso ao processo, divulgaram o teor de atos processuais sujeitos a segredo de justiça, prevendo penalização para quem, independentemente disso, tomando conhecimento de tais factos o divulgar. A norma, pela sua formulação, parece querer visar, especialmente os jornalistas, desresponsabilizando, desde logo, de forma implícita os magistrados, os funcionários e os advogados que são, pela natureza das coisas, os principais suspeitos da violação direta do segredo de justiça.

Pode haver, mas não conheço nenhum caso em que um magistrado tenha sido investigado por violação de segredo de justiça num caso mediático, quando é certo que hoje se multiplicam os juízos políticos dos magistrados em processos judiciais.

Não conheço a decisão agora anunciada que terá ordenado a não publicação (o não acesso ao público) do jornal «Sol». Mas mesmo sem a ver, tenho-a para mim como uma coisa horrível.

Se ela se fundamentar nas perspetivas de publicação de escutas telefónicas que, embora protegidas pelo segredo de justiça, contenham factos socialmente relevantes em termos noticiosos, em conformidade com as boas regras do jornalismo, estaremos perante um caso de censura, constitucionalmente inadmissível e perante um interpretação inconstitucional do artº 371º do Código Penal ou a própria inconstitucionalidade do preceito.

É que a Constituição contém normas muito precisas que, à luz dos princípios da concordância prática e da proporcionalidade relevante, não podem deixar de ser prevalentes para a valorização do direito dos cidadãos à informação, constitucionalmente consagrado do artº 37º.

«Todos têm o direito (...) de ser informados, sem impedimentos nem discriminações» - diz o artº 37º, 1, garantindo o direito de todos os cidadãos à informação. Logo a seguir se vê, no artº 38º, que a realização desse direito passa pela garantia da liberdade de imprensa, estabelecendo o nº 2 que ela implica a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à protecção da independência e do sigilo profissionais.

Se analisarmos o Estatuto do Jornalista, constatamos que figura nele uma norma, que estabelece que o direito de acesso às fontes de informação não abrange o acesso a processos em segredo de justiça, não existindo em tal Estatuto nenhuma outra que proíba a divulgação de factos que sejam conhecidos pelo jornalista e que constem de processos em segredo de justiça.

Ao invés, o Estatuto impõe ao jornalista um conjunto de deveres muito objetivo, que entendemos ser instrumental do referido direito dos cidadãos à informação.

Relevamos do artº 14º o seguinte:

«1 - Constitui dever fundamental dos jornalistas exercer a respectiva actividade com respeito pela ética profissional, competindo-lhes, designadamente:

a) Informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião;

b) Repudiar a censura ou outras formas ilegítimas de limitação da liberdade de expressão e do direito de informar, bem como divulgar as condutas atentatórias do exercício destes direitos; (...)

e) Procurar a diversificação das suas fontes de informação e ouvir as partes com interesses atendíveis nos casos de que se ocupem;

2 - São ainda deveres dos jornalistas:

a) Proteger a confidencialidade das fontes de informação na medida do exigível em cada situação, tendo em conta o disposto no artigo 11.º, excepto se os tentarem usar para obter benefícios ilegítimos ou para veicular informações falsas;

b) Proceder à rectificação das incorrecções ou imprecisões que lhes sejam imputáveis;

c) Abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência.»



Parece-me que o dever de informar com rigor e isenção é manifestamente incompatível com qualquer sonegação de informação, seja ela decorrente da vontade do próprio jornalista, seja ela determinada por qualquer órgão de soberania, nomeadamente pelos tribunais.

O direito dos cidadãos à informação não pode ser impedido ou limitado por qualquer forma de censura, por força do artº 37º,2 da Constituição.

É certo que a mesma Constituição estabelece, no quadro da «tutela jurisdicional efetiva» (artº 20º,3) que «a lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.» Só que não pode deixar de interpretar-se o edifício constitucional no seu todo, dando-se prevalência a um preceito com manifesto prejuízo do que dispõe o outro.

A liberdade de imprensa é um dos elementos estruturantes do Estado de Direito democrático; o segredo de justiça não o é..

A violação do segredo de justiça pode desacreditar a própria justiça, que tem sido incapaz de o preservar; mas não descarateriza do Estado de Direito.

Aí está a diferença. É que a censura, no seu grau mais avançado que é o do impedimento da circulação de um jornal, descarateriza-o, desqualifica-o e torna-o irreconhecível

Porque causa danos irreparáveis.

Hoje já ninguém acredita na justiça.

Amanhã, sabendo-se que um tribunal decidiu impedir a publicação de um jornal que ainda não foi impresso, ninguém acreditará mais na comunicação social.

E a Democracia ficará irreconhecível...

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