ENTRE A
INSEGURANÇA E A XENOFOBIA
É INDISPENSÁVEL UM
SISTEMA DE REGISTO FIÁVEL
Comemoraram-se agora 30 anos sobre a
aprovação da Lei nº 37/81, de 3 de outubro, que instituiu o regime jurídico da
nacionalidade portuguesa do Portugal post-colonial e pré-europeu.
Trata-se de uma das mais importantes
leis publicadas na vigência do regime democrático restaurado em 1974, porque é,
no fim de contas, aquela que define quem constitui o povo português, quem são,
juridicamente, os portugueses.
A primeira conclusão que importa
extrair, após estas três décadas, é a de que a atual Lei da Nacionalidade
conseguiu resistir às mais importantes pressões que se exerceram no sentido de
a descaracterizar. Afigura-se, porém, perigoso que fiquemos por aí e que continuemos,
a pretexto da durabilidade da lei, a meter a cabeça na areia, no que respeita a
algumas questões, de natureza jurídica e política, que não devem adiar-se, sob
pena de o que é uma boa lei se transformar na sua antítese.
É especialmente oportuno meditar
sobre essa matéria num tempo histórico em que o país se encontra numa
encruzilhada, marcada por uma dificílima crise financeira, que afeta todo o
espaço em que ele se insere e em que, de outro lado, mercê de diversas razões,
Portugal e o seu povo voltam a ter uma grande importância geo-estratégica e a
desempenhar um papel que pode ser determinante da formatação dos equilíbrios do
século XXI.
I.
A nacionalidade e a cidadania
A generalidade dos autores que se
debruçaram sobre o direito constitucional português é unânime no apontamento de
que a República renascida no 25 de Abril de 1974 deu a primazia dos direitos
fundamentais aos cidadãos em geral, não distinguindo, nessa área, os nacionais
dos estrangeiros e relegando para uma lei infraconstitucional a definição do
que são os portugueses.
É dessa discreta lei
infraconstitucional - a Lei da Nacionalidade, de 1981 - que agora comemoramos
os 30 anos, num ambiente que é completamente diferente daquele em que ela foi
gerada.
Quando se debateu no parlamento o
novo formato do direito da nacionalidade portuguesa, vozes houve que se
ergueram questionando se o governo (de Francisco Pinto Balsemão) tinha tido o
cuidado de sondar as instituições europeias no sentido de apurar se as mesmas
estariam de acordo com uma tamanha abertura de Portugal ao reconhecimento da
nacionalidade portuguesa, não só àqueles a quem tal reconhecimento havia sido
garantido no quadro da descolonização mas também aos descendentes dos
emigrantes espalhados por todo o mundo.
A lei passou no formato em que foi
apresentada, apesar de todas as reservas de alguns parlamentares, que receavam
poder vir o país a ser assaltado (em
termos políticos, entenda-se) pelos descendentes dessa gente, muito dela
analfabeta ou, no mínimo, pouco letrada, esquecendo-se que os que ficaram no
país eram da mesma qualidade, porém menos ousados.
Tudo se compensou com políticas
influentes, no sentido de evitar o regresso «portugueses e luso-descendentes» a
Portugal e de influenciar o seu prestígio nas comunidades de acolhimento, para
que não regressassem porque, como escreveu Miguel Torga, não caberiam no que
foi o seu berço.
E tudo foi feito, pela generalidade
das forças políticas portuguesas, no sentido de evitar, a um tempo, que essa
gente espalhada pelo mundo tivesse a noção do que representava e ousasse
exercer os seus direitos políticos.
Durante anos os governos de Lisboa
deram instruções expressas aos consulados no sentido de evitar que os
portugueses residentes no estrangeiro se recenseassem e ainda hoje ocorre que,
mesmo que o requeiram, lhes é recusada a inscrição nos cadernos eleitorais,
nalguns consulados de Portugal.
Nada que seja extremamente grave.
Mas coisas sobre as quais é importante refletir, de forma descontraída e
otimista.
Já alguém escreveu que este é século
das migrações, entendidas essas como movimentos de pessoas no espaço global.
Para nós, portugueses, todos os séculos, desde o século XV, têm sido de migrações, razão pela qual o
problema da nacionalidade nos persegue e nos obriga à construção de soluções
novas há mais de 500 anos.
Paris, que foi a maior cidade
portuguesa nos anos 60/70 do século passado (maior que Lisboa) só não foi uma
colónia portuguesa porque tudo aconteceu no século XX. Mas, mesmo assim,
tivemos a colónia portuguesa de Paris, a par da do Rio ou da de Buenos Aires.
Levamos a lógica do colonialismo, de
forma pacífica, até para os países amigos, alguns deles de forte tradição anticolonial.
E aí ainda não descolonizamos, sendo importante que o façamos com a maior
urgência.
Passados 30 anos sobre a aprovação
da Lei da Nacionalidade portuguesa de 1981, que corporiza as regras do acesso à
qualidade de nacional português, é essencial acabar de vez com o mito do
império, o que supõe que assumamos, sem preconceitos, a qualidade e a condição
de povo em diáspora.
Somos cidadãos do mundo, somos até,
nalguns casos, cidadãos de outros países, mas somos nacionais portugueses.
II.
Uma nacionalidade não pode ser apenas um passaporte
A aquisição de uma
nacionalidade não pode confundir-se - e muito menos reduzir-se - à aquisição de
um passaporte.
Um dos aspetos mais vulneráveis da
lei portuguesa da nacionalidade, no quadro das relações internacionais, reside
no facto de, alegadamente, ela facilitar excessivamente o acesso de cidadãos
estrangeiros a um passaporte português.
Essas observações pecam,
especialmente, pelos exemplos que invocam.
Não faz nenhum sentido que os
ingleses se refiram a tal facilidade e invoquem, como exemplo da mesma, a
integração do nascimento de portugueses do antigo Estado da Índia ou a
atribuição da nacionalidade portuguesa aos seus descendentes. Do mesmo modo,
não faz sentido que invoquem a atribuição da nacionalidade a nacionais
britânicos, peticionada num dos nossos piores consulados, que é o consulado de
Portugal em Londres.
Portugal é um país soberano, cabendo
no quadro da sua soberania, a definição de quem são os portugueses. A nossa Lei
da Nacionalidade é extremamente precisa na definição de quem são os
portugueses de origem, por força da
lei, e das condições em que os
estrangeiros podem adquirir a nacionalidade portuguesa.
A emissão de um passaporte português
é apenas uma consequência do reconhecimento da qualidade de nacional português.
Não pode, por isso, aceitar-se que se
transforme no objeto de uma espécie de indústria, tão censurável como a dos
casamentos brancos.
Perante a multiplicação de
escândalos que afetavam a qualidade dos passaportes portugueses, vingou a ideia
da centralização da emissão dos passaportes, que defendemos durante anos. Foi
criado o passaporte eletrónico português (PEP) e foi criado o cartão de
cidadão, ambos com interessantes parâmetros de segurança e de garantia de
fiabilidade.
Mas, ao mesmo tempo que se fecharam
as portas, escancararam-se as janelas, introduzindo-se fatores de insegurança
no funcionamento do registo civil, que podem abalar completamente os sucessos
alcançados e, mais grave do que isso, afetar de forma irremediável a
consolidação da credibilidade do estatuto da nacionalidade portuguesa, que se
vem construindo há 30 anos.
Para que esse estatuto continue a
gozar do crédito que conquistou, é indispensável consolidar as medidas de
segurança documental, inauguradas com a criação do passaporte eletrónico, em
vez de as abalar a montante.
Por isso mesmo nos parece que a
sobrevivência e a continuidade da Lei da Nacionalidade Portuguesa de 1981,
construída e promulgada em homenagem aos portugueses da diáspora, passa pela
adoção de um conjunto de cuidados e de medidas que lhe reforcem o sentido e a
credibilidade.
Não seguir esse caminho é abrir
portas aos que defendem mudança radical do sistema e a redução do acesso à
nacionalidade a quem residir em Portugal, numa lógica que já não é de fim de
império mas de finis patriae.
A mais importante questão a que a
República deve responder neste 30º aniversário da Lei da Nacionalidade Portuguesa,
que é o 35º ano da Constituição de 1976, é a de saber qual é/deve ser o modelo da
identidade nacional dos portugueses, vivam eles no território nacional ou no
estrangeiro.
Trata-se, no fim de contas da
necessidade de resumir, de forma muito pragmática, que pressupostos e que
qualidades permitem/devem permitir a o reconhecimento da qualidade e a identificação
de um cidadão como nacional português.
Não se trata já de dizer quem são
os portugueses – matéria que é definida
na lei de forma clara e inequívoca – mas quais são os caminhos para os
identificar como tal.
Como acontece com frequência
relativamente às perguntas de resposta difícil, encontrou-se, no quadro da lei
cujo aniversário agora se comemorou, uma solução simples (talvez até simplista),
aliás copiada de leis antecedentes, marcadas por diferentes sentidos e
diferentes estratégias: português é aquele
que tiver o seu nascimento registado no registo civil português, sem que se
faça menção de que não o é[i].
Trata-se de uma solução deficiente,
sem dúvida. Mas que fazia sentido se a lei não se tivesse desprotegido das
cautelas que lhe marcavam as fronteiras.
Uma lei tão simples, com apenas 40
artigos, como é a Lei da Nacionalidade Portuguesa de 1981, só conseguiu
sobreviver por 3 décadas, sem grandes incidentes que a afetassem, porque, para
lhe dar execução, existia um sistema de registo seguro e fiável, que agora
deixou de existir.
Para se perceber o sentido, o
alcance a gravidade da afirmação antecedente é indispensável rever a história recente
e alguns dos seus incidentes.
III. Vários contextos, várias perspetivas e alguns
traumatismos
Muitas coisas aconteceram ao longo
dos 37 anos da democracia portuguesa e dos 30 anos que marcam a vida da Lei da
Nacionalidade de 1981.
Portugal tinha concluído, de forma
muito expedita, um processo de descolonização que durou menos de 19 meses, se
contarmos o seu início em 25 de Abril de 1974 e o seu termo com a independência
de Angola, em 11 de Novembro de 1975.
O «buraco» resultante da perda de
territórios, que tinham dimensão próxima da da Europa (dimensão de que, antes,
se vangloriava o país) foi, de certo modo, preenchido pela afirmação da
grandeza de um povo espalhado pelos 7 continentes.
A ideia não era nova, porque já
havia sido afirmada em 1959, tanto nos trabalhos preparatórios como no debate
parlamentar da Lei nº 2098.
Embora a questão da nacionalidade
tivesse a ver, essencialmente, com a definição do que era a população nacional,
não deixava a lei de abrir uma janela excecional, que permitia o reconhecimento
da nacionalidade portuguesa aos filhos dos portugueses nascidos no estrangeiro.
«Num país cujos nacionais se
dispersam por todas as partidas do Mundo, seria doloroso fechar as portas da
cidadania portuguesa aos filhos de pai português nascidos no estrangeiro que,
após a maioridade, procurassem a terra dos seus maiores para aqui continuarem e
acabarem os seus dias. Os perigos que a solução adotada poderia envolver estão
suficientemente conjurados através da faculdade concedida ao Estado na base
XXXV. E, por outro lado, não repugna admitir que voluntariamente percam a
nacionalidade portuguesa todos aqueles que, nascidos embora em território
nacional, declarem, mesmo depois da maioridade, querer seguir a nacionalidade
estrangeira correspondente ao sangue donde provêm.» - escrevia-se no
relatório da proposta de Lei que originou a Lei nº 2098, de 29 de Julho de
1959.
Na sua versão definitiva, acabaria
essa lei por permitir a aquisição da nacionalidade portuguesa também aos filhos
de português, nascidos no estrangeiro, que voluntariamente inscrevessem o seu
nascimento no registo civil português.
Poucos o faziam, porque boa parte
deles tinham emigrado ilegalmente ou por razões políticas.
Quando caiu a ditadura, em 1974, havia milhões de
portugueses espalhados pelo mundo.
Essa população, antes esquecida, emigrou em razão de
diversas circunstâncias, desde a miséria, que marcou as crises que se sucederam
às duas guerras mundiais do século passado, até à busca da liberdade que
faltava em Portugal, passando pela fuga da guerra colonial (1961-1974) ou, pura
e simplesmente, pelo espírito de aventura que sempre nos marcou como povo.
Perdidas as colónias territoriais,
os governantes portugueses agarraram-se a esse povo especialmente por razões
financeiras: as remessas dos emigrantes tinham um peso específico muito elevado
na balança de pagamentos e, por isso mesmo, era importante dar-lhes alguma
atenção.
A Constituição da 1976 remeteu para
a lei ordinária a definição do que haveria de ser a cidadania portuguesa. E
essa definição (na linha da dicotomia cidadania/nacionalidade que já marcara a
lei de 1959) só haveria de ser feita 4
anos depois, com lei 37/81, que agora comemora 30 anos.
O então ministro da Administração
Interna, Fernando Amaral, dizia isto, de forma expressiva, no ato da
apresentação da proposta de lei: «Esta (proposta) é o contributo que o
Governo vem dar para que aquele regime jurídico (o da nacionalidade) se
identifique com os princípios constitucionais, satisfaça ajustadamente as
relações do mundo de hoje e para que seja porta aberta da justiça de vida aos
nossos emigrantes.»
Tratava-se, num certo sentido, de
devolver a pátria a milhões de cidadãos que a não tinham.
No debate parlamentar afirmava o então deputado
Fernando Condesso:
« No domínio dos princípios, a proposta vem consagrar
a prevalência da importância dos laços de sangue sobre os de índole
territorial, na esteira das legislações europeias em face da constatação do
nosso forte fenómeno emigratório, perante a, agora, reduzida extensão
territorial[1].
A nacionalidade aparece entendida, na proposta, a um
tempo, como um vínculo jurídico-público que liga o indivíduo ao Estado - o que
revela para o efeito de reservar a este a liberdade de conceder ou não a
nacionalidade a estrangeiros (o Executivo reger-se-á por razões de conveniência
e interesse público), e, ainda, de se opor à sua aquisição; e, por outro, como
um autêntico direito fundamental do indivíduo - o que vem, fora das situações
de naturalização, dar relevo fundamental, nesta matéria, à vontade, levando a
que, quem for plurinacional, possa renunciar, à nacionalidade portuguesa e que
a aquisição da nacionalidade estrangeira não implique automaticamente a perda
da nacionalidade portuguesa, não podendo o Estado, em qualquer situação,
retirá-la contra a vontade do seu titular, implica, ainda, a
jurisdicionalização do contencioso da nacionalidade.
Quanto ao disposto no domínio da oposição à aquisição
da nacionalidade, ela pode incidir, quer sobre os que a possam adquirir por
efeito da vontade como por efeito da filiação e adoção.
E poderá fundamentar-se em manifesta inexistência de
qualquer ligação efetiva à comunidade nacional, na prática de crime punível com
pena maior segundo a lei portuguesa e, ainda, no exercício de funções públicas
ou na prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.»
Concluída a descolonização em 1975, os dirigentes
portugueses continuaram a sonhar com colónias de pessoas, no Brasil, nos
Estados Unidos, na Índia, na Austrália,
no Luxemburgo, na França ou na Alemanha, configurando, a partir dessa
construção colonial, dois círculos da emigração na Europa e no Resto
do Mundo.
A Lei da Nacionalidade de 1981 nasceu sob esse clima,
que só muito mais tarde esmoreceu.
Em 1986 – 5 anos após a publicação
da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro – Portugal aderiu à Comunidade Económica
Europeia (CEE) e em 1992, ou seja 11 anos depois, o Tratado de Maastricht
alterou o artº 17º do Tratado de Roma e instituiu a cidadania europeia.
Ninguém previra uma tão importante
mudança quando foi aprovada a Lei de 1981[ii]
Todos os cidadãos portugueses
passaram a ser, por força de tal disposição, cidadãos da União Europeia.
Esta alteração de circunstâncias – inesperada no
momento da aprovação da Lei – teve um enorme impacto no crescimento dos pedidos
de atribuição e aquisição da nacionalidade portuguesa, logo a partir de 1992, mas,
especialmente, após a reforma legislativa que, em 2006, facilitou a
naturalização dos imigrantes residentes em Portugal e a aquisição da nacionalidade
pelos seus filhos menores bem como a aquisição da nacionalidade por
naturalização aos netos de nacional português nascidos no estrangeiro.
Entretanto, depois de uma onda de imigração que marcou
a última década do século passado e os primeiros anos do século XXI, Portugal
voltou a ser um país de emigração, sobretudo de quadros técnicos, que se espalharam
pelos países mais dispares, nomeadamente por países com quem os portugueses não
têm relações migratórias históricas,
como é o caso de boa parte dos que saíram do bloco soviético e da China.
IV. O primeiro abalo da Lei nº 37/81 e as cortinas
de fumo da nacionalidade portuguesa
Para que se tenha uma noção da fragilidade da Lei nº
37/81, é importante recordar o debate que se realizou em 1994, 13 anos depois
da sua vigência, em torno da proposta de
lei que conduziu à Lei nº 25/1994, de 19 de Agosto.
Estavam em causa, no essencial, meia dúzia de
casamentos entre cidadãos nacionais e atletas estrangeiros, que, por essa via,
adquiriam imediatamente a nacionalidade portuguesa.
A benefício do termo das invejas desportivas
alterou-se a lei, passando a permitir-se a aquisição da nacionalidade portuguesa aos
estrangeiros que casassem com portugueses apenas depois de três anos de
casamento e obrigando-os, em todo o caso a apresentar provas de uma ligação
efetiva à comunidade nacional.
Provas do mesmo tipo de ligação passaram a ser
exigidas aos menores, filhos dos estrangeiros que adquirissem a nacionalidade
portuguesa e aos adotados por cidadãos nacionais.
Essa reforma legislativa ofendia, de forma inequívoca,
a Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, a que Portugal aderiu em 2000[iii],
pelo que se processou em 2006 uma outra reforma destinada a repará-la[iv]
e a alargar o acesso à nacionalidade portuguesa por parte dos filhos de
estrangeiros nascidos em território português.
Inexplicavelmente, a Conservatória dos Registos
Centrais passou a promover a oposição em massa aos pedidos de aquisição da
nacionalidade portuguesa por parte de estrangeiros casados com nacionais
portugueses e de crianças, filhas de estrangeiros que adquiriram a
nacionalidade portuguesa.
Interpretamos estas iniciativas como meras cortinas de
fumo, ajustadas a tentar demonstrar que Portugal cria dificuldades à aquisição
da nacionalidade portuguesa por estrangeiros, compensando as alegações que
alguns proferem em sentido contrário.
É certo que a questão da nacionalidade portuguesa
suscita, uma série de problemas de
direito internacional, que se afiguram mais sensíveis depois da integração de
Portugal na Comunidade Económica Europeia - agora União Europeia - e
especialmente sensíveis depois do acentuar da crise financeira, que marca os
países ocidentais.
De tempos a tempos, constatamos deslizes confessórios
de representantes do governo, justificando a denegação de direitos a cidadãos
portugueses, a pretexto da necessidade de cooperação com terceiros estados em
matéria de imigração. A esse propósito são hoje conhecidas as preocupações
relativas aos excessos de emigração ilegal para os Estados Unidos, que podem
pôr em causa a manutenção dos portugueses no Visa Waiver Program.
Entendemos,
porém, que os problemas que hoje se suscitam em torno da Lei da Nacionalidade
de 1981 e do regime jurídico da nacionalidade portuguesa nada têm a ver com
alegadas «faltas de ligação à comunidade nacional» por parte de alguns
portugueses, ou de candidatos à aquisição da nacionalidade portuguesa. Têm a
ver sim com uma extrema vulnerabilidade do sistema de registo e com a
facilidade de falsificação de documentos que a evolução do sistema de registos
veio permitir.
O maior problema
que hoje se levanta – afinal a todos nós, nacionais portugueses – reside na falta
se segurança do sistema de registo civil e na facilidade de usurpação de
identidade, que tem como contrapartida a dificuldade de defesa da identidade daqueles
que a ela têm direito.
Bem se poderiam
poupar energias noutras áreas para atacar de frente os verdadeiros problemas
que temos em cima da mesa.
Quanto à Lei da
Nacionalidade propriamente dita ela não precisa senão de pequenos ajustamentos,
de que relevam os que abaixo referimos.
O quadro da
aquisição da nacionalidade originária deveria, em nossa opinião, ser alargado aos
descendentes em segundo grau de nacionais portugueses, nascidos no estrangeiro,
substituindo-se o direito subjetivo à naturalização, de que os netos de
portugueses são titulares, por um direito à nacionalidade originária.
Importante é,
por outro lado, clarificar de vez a
questão da «inexistência de ligação à comunidade nacional», que constitui
fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por parte dos
cônjuges e companheiros de cidadãos nacionais e por parte dos filhos menores
dos estrangeiros que adquiram a nacionalidade portuguesa.
Não faz nenhum
sentido que após a reforma de 2006 continue a exigir-se aos cônjuges e companheiros
de portugueses e aos filhos menores dos que adquiram a nacionalidade portuguesa
que façam prova de ligação à comunidade nacional, ressuscitando-se uma
jurisprudência racista e xenófoba que se pretendeu sepultar.
O que faz
sentido é que, de vez se clarifique, que o Ministério Público só deve deduzir
oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa nos casos em que os vínculos
familiares que são pressupostos do pedido sejam falsos ou artificiais, não
correspondendo a uma autêntica relação familiar.
Defender o
contrário é atacar, no mais profundo das suas entranhas, as famílias jovens,
constituídas pelos nossos novos heróis, que são cientistas, engenheiros,
pintores, designers, matemáticos, arquitetos, que diariamente deixam o país
para trabalhar no estrangeiro, sem abdicar do direito de constituir famílias
que possam adotar o adjetivo português.
V. A questão essencial do registo civil
Como já atrás se
referiu, a nacionalidade portuguesa
prova-se pelo registo do assento do nascimento no registo civil português.
O registo civil foi
instituído em Portugal pelo Código do Registo Civil de 18 de fevereiro de 1911
e consolidado, em 20 de abril do mesmo ano com a Lei da Separação da Igreja e
do Estado.
Foi uma luta que durou
décadas, essa que permitiu estabelecer na área do Estado o registo dos factos
mais relevantes para a vida dos cidadãos.
Menos de 100 anos após a
institucionalização do registo civil em Portugal, mais precisamente em 22 de
setembro de 2007, foi o sistema violentamente abalado por uma reforma tão
pueril como irresponsável.
As alterações
introduzidas no sistema de registo civil pelo Decreto-Lei
n.º 324/2007, de 28 de setembro agrediram o sistema num dos seus vetores mais
vincadamente republicanos, que é o da segurança jurídica, como se se
pretendesse recuperar e restaurar um dos defeitos mais apontados, antes da
estatização do registo civil, ao registo canónico - a possibilidade (aliás
raramente verificada) da falsificação.
Começa hoje a
constatar-se que a «modernização» dos serviços públicos e uma boa parte da
informatização de serviços com relevância jurídica, em Portugal, não passa de
um embuste, que rendeu milhões de euros a gente com boas conexões no arco do
poder e que permite coisas tão grotescas como a prisão do presidente de uma da
mais importantes câmaras municipais do país porque, alegadamente, não constava
dos registos informáticos a pendência de um recurso.
No caso do
registo civil a reforma de setembro de 2007 – 96 anos após a publicação do
Código do Registo Civil de 1911, 26 anos após a publicação da Lei da
Nacionalidade e um ano e meio após a
publicação da Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de abril – veio transformar-se,
como diria o Saddam Hussein na «mãe de todos os golpes».
Já antes –
muitos anos antes – havia indícios de fabulosos negócios montados em torno da
documentação e da aquisição da nacionalidade portuguesa, ao ponto de se
ameaçarem advogados que ousaram tratar esta matéria de forma profissional, com
a dignidade que merecem as questões jurídicas.
O que a reforma
do registo civil de 2007 veio fazer foi, no essencial, o seguinte, que
resumimos para poupar espaço e tempo aos leitores:
i.
Acabar com a
publicidade dos registos, dificultando a sua consulta, por via de um conjunto
de expedientes de que relevam os seguintes:
a.
Acabou-se com a
competência territorial das conservatórias, permitindo-se que um facto ocorrido
em Caminha possa ser registado em Vila Real de Santo António e eliminou-se, por
essa via, o controlo de vizinhança, que é uma das marcas do sistema republicano
de registo civil[v];
b.
Passou a ser
impossível saber quem nasceu em determinada freguesia ou concelho em
determinada data e a ser impossível consultar os respetivos livros de registo;
c.
Os livros de
registo desapareceram, substituídos por uma base de dados que, em bom rigor, só
pode ser consultada pelos funcionários,
não podendo sequer ser consultada pelos próprios que apenas podem pedir
certidões, como acontece com quem disponha de todos os elementos relevantes do
registos.
ii.
Determinar a
destruição de todos os documentos apresentados para o processamento dos
registos, imediatamente após a sua digitalização (artº 17º)[vi]:
a.
Com este
expediente permitiu-se toda a possibilidade de falsificações, sem que seja
possível impugná-las, porque as falsificações de documentos digitais só são
possíveis à vista do original.
b.
É muito difícil
– praticamente impossível – verificar a falsificação de um documento
digitalizado, desde que o original não exista.
c.
A informatização veio facilitar a
falsificação. É muito mais fácil proceder a uma falsificação por via digital do
que pelos sistemas clássicos.
iii.
Manter a qualificação dos
«agentes consulares e diplomáticos» portugueses no estrangeiro como «órgãos
especiais do registo civil» que, nos termos do mesmo Código, podem desempenhar «funções de
registo civil, a título excecional» (em conformidade com o artº 5º), mas
permitir-lhe intervenção direta na base de dados do registo civil sem nenhum
controlo[vii].
Parece-nos
grave – mesmo muito, muito grave - que a
reforma do Código do Registo de 2007 tenha posto termo ao princípio da
territorialidade das conservatórias do registo civil que é, afinal, o único que
justifica a existência de conservatórias do registo civil em todos os
concelhos. Nenhuma vantagem se auferiu em termos de gestão e abriu-se a porta a
todas as fraudes em matéria de registo de nascimento, tendo-se transformado
Portugal num dos países onde é mais fácil proceder ao registo de nascimento sem
que as crianças existam.
A
eliminação do controlo de vizinhança veio facilitar tudo isso e muito mais.
Esta
reforma foi complementada pela Portaria n.º
1224/2009, de 12 de outubro, que, de uma forma muito discreta (quase
clandestina) determinou que «os atos e processos de registo consulares devem ser efetuados
no Sistema Integrado de Registo e Identificação Civil (SIRIC) e obedecem aos
modelos nele existentes.»
Em bom rigor, não se trata de
atos de registo consular, mas atos de registo civil português, nomeadamente dos
que conferem o direito à nacionalidade – et pour cause – o direito a um
passaporte português.
VI. Da puerilidade das reformas à necessidade de
segurança
Um dos problemas mais graves de muitas reformas realizadas em
Portugal é o da puerilidade.
Normalmente, a corrupção e o
tráfico de influências acompanham-na, como fenómenos mais ou menos
oportunísticos; mas não nos parece que seja justo reduzir tudo à corrupção e ao
compadrio.
O que vivemos em Portugal, nos
últimos anos, no que se refere à «modernização» tem muito a ver com esse
fenómeno da puerilidade que, por si próprio, justifica, numa base de
aproveitamento oportunístico de terceiros, uma série de operações funestas, que
podem afetar a nossa credibilidade coletiva e o nosso futuro coletivo.
Não vale a pena, por isso mesmo,
especular sobre as coisas e os acontecimentos negativos nem sobre realidades
inaceitáveis, importando mais do que isso que restauremos os padrões mínimos de
segurança para a nossa sobrevivência como povo de diáspora, espalhado por tudo
o mundo.
É importante ter a noção de que
uma boa parte da segurança do registo civil depende de três fatores, que foram
seriamente abalados pela reforma de
2007:
i.
Em primeiro lugar, da natureza pública do sistema de registo e da
sua completa transparência e acessibilidade
Foi esse
um dos argumentos mais fortes que os republicanos usaram para impor um registo
público, alternativo a um registo canónico que permitia fazer tudo para
direcionar os patrimónios.
ii.
Em segundo lugar, da centralização dos registos relativos aos atos
ocorridos nos estrangeiro e do estabelecimento da competência exclusiva de uma
repartição para o processamento de tais registos
É comum a
todos os países a fragilidade das estruturas consulares. Elas são
representações polivalentes que, por regra, não dispõem de níveis de especialização
que permitam o tratamento de questões de tão elevado peso específico como são
as questões da nacionalidade, da família e dos direitos sucessórios.
As questões de
direito internacional privado são das mais complexas que se suscitam na área do direito civil.
As problemáticas
da questão prévia em DIP, da qualificação ou do re-envio, exigem uma preparação sofisticada, que a generalidade das repartições consulares
não tem condições para resolver.
Por isso mesmo,
a generalidade dos países confere às suas repartições consulares um mero papel
de «caixa de correio» relativamente aos atos de registo civil, não lhes
atribuindo eficácia, sem que os mesmos sejam controlados e supervisados por uma
entidade central.
Esta foi também, durante longos anos, a
tradição portuguesa, que terminou com a reforma de 2007.
Atualmente
os consulados de Portugal podem praticar atos de registo civil (com repercussão, nomeadamente, no
plano da nacionalidade, dos direitos de família e do direito sucessório), sem
que, porém, disponham de profissionais competentes e habilitados na área dos
registos públicos. Não existe, com efeito, nenhum consulado de Portugal em todo
o mundo, que tenha no seu quadro um
conservador do registo civil.
É certo que a
Lei da Nacionalidade continua a dispor no seu artº 16º que «as declarações de que
dependem a atribuição, a aquisição ou a perda da nacionalidade portuguesa devem
constar do registo central da nacionalidade, a cargo da Conservatória dos
Registos Centrais.» Estabelecendo ainda ao artº 17º que «as declarações de
nacionalidade podem ser prestadas perante os agentes diplomáticos ou consulares
portugueses e, neste caso, são registadas oficiosamente em face dos necessários
documentos comprovativos, a enviar para o efeito à Conservatória dos Registos
Centrais.»
A verdade é que nada disso
funciona… Nem existe, em boa verdade.
iii.
Em terceiro lugar do exercício efetivo das competências relativas
à nacionalidade portuguesa das pessoas nascidas no estrangeiro por uma
repartição especializada e com competências acumuladas nessa matéria
Vivemos
hoje, em Portugal, num clima de absoluta fraude à lei.
O que
justificou a constituição/criação de um registo central de nacionalidade[viii] foi a necessidade de ter um corpo de funcionários
altamente especializado nas principais valências do direito internacional
privado.
Esse
registo central da nacionalidade, criado pela Base XXXIX da Lei nº 2098 foi
mantido pelas referidas disposições da atual Lei da Nacionalidade, mas foi, na
realidades, descontinuado, tendo deixado de ser processado.
Hoje, tal
sistema centralizado de registo foi completamente anulado, reduzindo-se a zero
os níveis de segurança relativos aos registos de atos ocorridos no estrangeiro.
Eis alguns
problemas que não podem continuar a escamotear-se, relativamente ao registo de
atos ocorridos no estrangeiro:
A.
A fragilidade da estruturas consulares e os riscos de abuso
de poder
As
estruturas consulares da generalidade dos países são muito frágeis e
vulneráveis. São, por regra, pequenos escritórios que representam Estados longe
das respetivas capitais, o que potencia a criação de micro-poderes de Estado.
Os
funcionários consulares dispõem de um poder enorme, se não estiverem sujeitos a
um controlo muito rigoroso. Essa vulnerabilidade é especialmente relevante nas
áreas documentais, razão pela qual, de um lado, se criou o referido sistema de
registo central da nacionalidade e, de outro lado, nunca se reconheceu eficácia
probatória plena as certidões emitidas pelos consulados.
Depois de
anos com escândalos sucessivos relativamente à falsificação de passaportes – o
que lançou o descrédito generalizado sobre os passaportes portugueses – viu-se
o governo obrigado a centralizar a emissão de passaportes na Casa da Moeda, em
Lisboa e à adoção de medidas especiais de segurança na confeção dos próprios
passaportes.
Toda a
segurança que se ganhou com esta mudança foi compensada com a completa
insegurança a montante.
Os registos
operados nos consulados passaram a ser processados diretamente no sistema
SIRIC, sem nenhum controlo[ix]
e sem que os documentos originais sejam sequer depositados em Portugal.
Esta
situação é da maior gravidade, a vários títulos.
Em primeiro
lugar, é relevante o facto de nenhum consulado de Portugal no estrangeiro ter
um conservador do registo civil residente ou funcionários com formação
específica e qualificada na área do registo civil e, especialmente, do direito
internacional privado.
Em segundo
lugar, releva o facto de a consciência da falta de controlo documental
constituir um incentivo à falsificação ou à aceitação de falsificações. Ao
contrário do que se possa imaginar, os sistemas informáticos facilitam as
falsificações em vez de as dificultar.
A falsidade
de documento manuscrito em que tenha substituído o nome original por um outro,
com caligrafia idêntica, é facilmente verificável por observação do original.
Mas é impossível de verificar se o documento falsificado for digitalizado e
destruído, aliás em obediência à lei.
A ideia
pueril que conduziu ao atual artº 17º do Código do Registo Civil, que determina
que «todos os documentos que tenham sido digitalizados devem ser destruídos
imediatamente» constitui um apoio inequívoco à indústria da falsificação de
documentos, que move muitos milhões de euros na área do registo civil e da
nacionalidade.
B. A desconsideração dos conflitos de interesses
Constitui
regra elementar do notariado a que nos diz que quem desempenhar funções
notariais não pode fazer em atos nos quais tenha interesse a qualquer título.
Por isso
entendemos que, do mesmo modo que os advogados não podem proceder a
certificações ou reconhecimentos de documentos a usar em processos em que são
requerentes, não devem os funcionários consulares desempenhar tais funções
relativamente à legalização (ou omissão dela) nos processos que instruam.
Parece-nos
elementar que se crie um sistema de duplo controlo da qualidade documental,
envolvendo mais do que um funcionário na prática dos atos de registo. Só assim
será possível reduzir o volume das falsificações, geralmente marcadas por
conflitos de interesses, correntes nos quadros de favorecimento pessoal, tidos
por incontroláveis.
C. A falta de preparação da generalidade das conservatórias do registo civil para o tratamento registral de atos ocorridos no estrangeiro
Temos para
nós que a descentralização e a anulação da competência territorial das
conservatórias do registos civil não teve nenhuma utilidade, para além da de
permitir a multiplicação de cambalachos, que eram impossíveis antes da reforma
de 2007.
Não faz
nenhum sentido que um nascimento ocorrido (ou não ocorrido) no Algarve seja
registado em Trás-os-Montes ou que um nascimento ocorrido no Bangladesh seja
registado numa conservatória da Beira Interior ou do Alentejo.
A
atribuição a todas as conservatórias de registo civil das competências para a
instrução e processamento dos atos cujos registos devem ser processados pela
Conservatória dos Registos Centrais, podendo embora ter sido realizada de boa
fé, serviu apenas, inequivocamente, para aumentar a insegurança do sistema de
registos.
A
«descentralização» serviu quase só para diluir competências e para anular o
elevado nível de especialização a que se chegou na Conservatória dos Registos
Centrais, hoje refém do que, em seu nome, se faz em todo o país.
O que hoje
se não consegue numa conservatória consegue-se, por regra, numa outra. E, por
via de regra, isso não acontece por a primeira ser mais exigente que a segunda
mas apenas porque há variáveis de competência e de escrúpulo.
Isso é
especialmente grave quando os problemas suscitados têm a ver com a qualidade
dos documentos, que não passam de falsos a verdadeiros, como que num passe de
mágica, pelo simples facto de serem cópias certificadas por um advogado ou um
solicitador, embora esse facto seja suscetível de induzir os funcionários na
convicção de que nada lhes acontece ser processarem com documentos adulterados.
D. A abdicação dos poderes de Estado e o abandalhamento da naturalização
A
naturalização começou por ser uma graça, primeiro do rei e depois da República.
Era titulada por um alvará, que os cidadãos guardavam, devidamente
encaixilhado, na sala de jantar.
No quadro
da Lei da Nacionalidade de 1981, que agora fez 30 anos, conferiram-lhe os
parlamentares a mesma dignidade, estabelecendo que a competência para a
conceder pertenceria ao governo.
O que vem
acontecendo nos últimos anos redundou num completo abandalhamento da marca
solene que a naturalização de veria ter.
O Ministro
da Justiça, a quem é dirigido o requerimento, tem delegado os seus poderes num
secretário de Estado, que, por sua vez os delega no presidente do Instituto dos
Registos e do Notariado, o qual os subdelega numa infinidade de conservadores
do registo civil, espalhados por todo o país.
Segundo
noticias recentes, mais de 21.584 estrangeiros obtiveram a nacionalidade
portuguesa por naturalização, no primeiro semestre de 2011. O número total de
naturalizações durante o ano de 2010 terá sido de 24.478.
Ao mesmo tempo que isto acontece, talvez porque não
tem mais que fazer, já que boa parte do seu trabalho passou a ser feito em
conservatórias intermediárias, ou nas tais conservatórias que tem poderes
delegados para deferir as naturalizações, a Conservatória dos Registos Centrais
dedica-se à saga de deduzir oposição aos pedidos de aquisição da nacionalidade
apresentados por cônjuges estrangeiros de cidadãos portugueses ou por filhos
menores de estrangeiros que adquirem a nacionalidade portuguesa, que muitas
vezes são, uns e outros personalidades notáveis das respetivas comunidades.
Chocantes são, por regra, os argumentos usados nessas
oposições, como se, numa nova onda xenófoba, os nossos dirigentes quisessem
sepultar cinco séculos de diáspora.
VII. Portugal precisa de se re-encontrar com os portugueses
Tal como aconteceu há 30 anos -
quando o saudoso ministro Fernando Amaral clamava pela necessidade de atender
aos interesses dos emigrantes portugueses, Portugal está, de novo, perante um
quadro idêntico, ou seja, de costas voltadas para os portugueses da diáspora,
que são cada vez mais, cada vez mais espalhados e cada vez mais
universalistas, como se houvessem
incorporado Camões ou Fernão Mendes Pinto.
Encontramo-los hoje em todos os
lugares por onde já andavam e ainda em espaços novos e sem tradição para os
nossos destinos, desde os confins da Antártida ao Ártico ou à China.
Todos os dias recebemos mensagens de
amargura, geralmente geradas por informações contraditórias, onde conflituam a
que é certa e o disparate. Também passou a
fazer parte do quotidiano a prece (quase oração), vinda das mais variadas partes do Mundo de portugueses
que nos pedem que lhes depositemos documentos em Lisboa, com medo de que lhos
roubem ou lhos destruam.
Ninguém sabe onde estão os documentos
do extinto consulado de Santos, do de Hong Kong, do de Karachi ou do Durban.
E poucos imaginam o sofrimento de 50
anos (comemoram-se em Dezembro 50 anos) dos portugueses do Estado da Índia,
muitos deles arrastados na incerteza da sua identidade e outros com ela
completamente perdida, porque lha apropriaram, como se os tivessem
defenestrado.
Não nos parece que, pesem embora algumas
alterações manifestamente deficientes, o regime da nacionalidade portuguesa
instituído pela Lei nº 37/81 – agora com 30 anos – esteja em crise ou careça de
uma profunda reformulação. Mas parece-nos que é indispensável introduzir
algumas reformas e adotar cautelas especiais, sem o que o país corre o risco da
completa descredibilização e os portugueses o de não serem respeitados, como o
são atualmente, em todo o mundo civilizado.
Antes de tudo, é essencial levar
à prática a construção efetiva de um
registo central da nacionalidade, com um arquivo próprio dos documentos
comprovativos dos atos ocorridos no estrangeiro.
Não se trata de um fétiche; trata-se de uma necessidade.
Os consulados, com as suas
fragilidades, não devem continuar a realizar, de forma conclusiva, atos de
registo civil, devendo voltar a ser, tão só, entidades intermediárias na
receção dos documentos e voltando a conclusão dos atos de registo a depender de
uma decisão da Conservatória dos Registos Centrais.
Para tanto, torna-se indispensável
que, como acontece com a generalidade dos países, os originais dos documentos
voltem a ser enviados para um arquivo central em Lisboa.
É indispensável para os portugueses
do estrangeiro ter a certeza de que os seus documentos (os originais dos seus
documentos) estão depositados em Lisboa e de que ninguém porá em causa a sua identidade, nem lha roubará.
É indispensável, para esses
portugueses, ter a certeza de que não verão as suas vidas afetadas pela
descredibilização a que insegurança conduz. Muitos deles, ou os seus
ascendentes, já passaram por situações dramáticas, que é importante evitar.
Há um velho ditado português que diz
que «a ocasião faz o ladrão».
Parece-nos absolutamente essencial
criar um arquivo documental onde possam ser depositados os documentos originais
relativos aos atos processados nos estrangeiro e fazer depender a eficácia
desses registos do respetivo depósito.
Mesmo que se faça apenas uma
verificação dos documentos originais por amostragem, a simples exigência do
depósito funciona como um elemento inibidor da falsificação, que o Código do
Registo Civil, no seu formato atual, indiscutivelmente favorece.
Mesmo que tenha que se lançar uma
pequena taxa que permita suportar os custos da manutenção desse arquivo, é
nossa convicção que toda a gente se disporá a proceder ao seu pagamento, para
pôr termo ao grotesco da situação atual.
Para além da criação de um arquivo
central da documentação do registo civil, relativa aos portugueses residentes
no estrangeiro, parece-nos indispensável retomar a tradição do registo central
da nacionalidade, com competência para o processamento dos registos relativos a
todos os atos registrais dos portugueses, que tenham ocorrido no estrangeiro.
O processamento destes registos
exige uma formação específica na área do direito internacional privado e,
sobretudo, uma coerência procedimental, que se tornou impossível com a
dispersão da instrução de tais processos por todas as conservatórias do registo
civil do país e que veio colocar o
sistema de registo e todos os operadores sob suspeita.
Não pode merecer credibilidade um sistema em que um ato que é
rejeitado por uma repartição acaba por ser realizado por outro.
Acima de tudo, devem todos os
portugueses ser tratados como «portugueses de primeira» e não uns como de
primeira e outros de segunda.
Há um conjunto de reformas e de afirmações de progresso que não passam de
pura demagogia.
Não pode nem deve continuar a
vender-se gato por lebre, permitindo-se um processamento de registos vitais,
sem um mínimo de qualidade e sem um mínimo de segurança.
Isso pode custar-nos demasiado caro
a todos nós.
Miguel
Reis
3
de outubro de 2011
Notas
[1] A maioria dos países europeus tinha regimes
de nacionalidade baseados no jus soli.
[i]
Artº 21º da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro
[ii]
O assunto foi referido pelo Deputado Magalhães Mota.
O Sr.
Presidente: - Srs. 'Deputados, para pedir esclarecimentos ao Sr. Ministro estão
inscritos os Srs. Deputados Magalhães Mota e Carlos Brito.
Tem a palavra
o Sr. Deputado Magalhães Mota.
O Sr. Magalhães Mota (ASDI): - Sr. Ministro da
Administração Interna, a matéria em discussão tem naturais repercussões sobre
uma disposição fundamental do Tratado de
Roma, qual é a que diz respeito à livre circulação de pessoas, visto que esta
disposição só é aplicável aos nacionais de cada Estado.
Pergunto, pois, se o Governo Português usou de
alguma forma de notificação, dentro das negociações com a Comunidade Económica
Europeia, para lhe dar conhecimento desta alteração que propõe em relação à
nossa legislação fundamental em matéria de nacionalidade.
O Sr.
Presidente: - O Sr. Ministro prefere responder imediatamente ou só no final de
todos os pedidos de esclarecimento?
O Sr.
Ministro da Administração Interna: - Prefiro responder no final, Sr.
Presidente.
O Sr.
Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Brito, para pedir
esclarecimentos.
O Sr. Carlos
Brito (PCP): -Sr. Ministro da Administração Interna, estamos conscientes da
grande importância da matéria que a Assembleia da República está a discutir
nesta reunião de hoje e, portanto, da grande importância da matéria sobre a
qual versa a proposta do Governo, tanto para os destinos do nosso país em geral como, de uma maneira mais
particular, para os destinos dos emigrantes portugueses e das comunidades
portuguesas.
Para avaliar melhor do alcance da proposta do
Governo e das suas soluções, desejava formular dois pedidos de esclarecimento,
que têm em vista uma tradução quantitativa das soluções adoptadas pelo Governo.
O primeiro
refere-se ao seguinte: poderá o Governo dizer-nos, se está em condições disso, qual o número de
cidadãos portugueses que perderam a nacionalidade portuguesa em virtude de
terem adquirido outra nacionalidade, nos últimos cinco anos, visto que, para
além de ser um número de anos que sempre constituirá uma amostra importante,
foi também este o número de anos que o Sr. Ministro referiu como sendo o curso
da discussão desta matéria que, enfim, acabou por desaguar na proposta que o
Governo agora aqui nos trouxe?
A segunda questão também implica uma tradução
quantitativa: quantos cidadãos adquiririam, ou viriam a adquirir ou a
readquirir, a nacionalidade portuguesa com as soluções da proposta do Governo,
no caso de ela vir a ser aprovada?
O Sr.
Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Carlos
Candal.
O Sr. Carlos
Candal (PS) - Quero, em primeiro lugar, cumprimentar V. Ex.ª, Sr. Ministro, e
dizer-lhe que tenho todo o gosto em o ver aí sentado, não por gosto político,
mas pela consideração que V. Ex.ª me merece.
Quero pôr-lhe
uma breve questão de pormenor, mas que pode interessar, para não me alongar em
considerações sem interesse na intervenção que venha porventura a produzir.
No artigo
28.º da proposta diz-se que, "para os fins do presente diploma, equivalem
a território português os territórios sob administração portuguesa)). Intriga-me um pouco o plural, na
medida em que, constitucionalmente, só o território de Macau está sob
administração portuguesa. Terá, porventura, pretendido referir-se o
território de Timor? Isso suscita-me algumas dúvidas, pelo que gostaria que me
esclarecesse.
O Sr.
Presidente: - Tem a palavra o Sr. Ministro, para responder.
O Sr.
Ministro da Administração Interna: - Antes de mais, e começando precisamente
pela amabilidade que me concedeu o Sr. Deputado Carlos Candal, quero
retribuir-lhe do mesmo modo e com a mesma sinceridade a delicadeza de que fui
objecto. A questão que me pôs pode levantar algum melindre, e daí que o
legislador, ou pelo menos quem pró moveu o respectivo projecto, tivesse tido o
cuidado de pôr o acento tónico em "territórios". É que, para além do
território de Macau, que não oferece quaisquer dúvidas, um outro poderá existir
porventura, cujo melindre da definição política se nos afigura levar, como
consequência, à situação de termos aqui definido no plural. Refiro-me,
expressamente, ao caso de Timor, cuja situação está a sofrer a sua evolução
política, e, como não sabemos ainda qual virá a ser a solução a adoptar no
mundo das relações internacionais, daí que, para a possível pretensão de no
futuro se vir a abranger ainda esse território, se tenha fixado a ideia de
"territórios" neste artigo 28.º da proposta.
Em relação às
questões que o Sr. Deputado Carlos Brito teve a amabilidade de me dirigir, devo
dizer-lhe, com toda a sinceridade, que não lhe poderei fornecer números.
Presumo- mesmo que será difícil, na medida em que houve muita perda de
nacionalidade automática, mercê de situações que não foram, de modo nenhum,
comandadas pelos processos políticos do nosso país e até por um processo
legislativo- que lhe diga respeito. De forma que estamos aí nessa situação a
pretender caminhar, com uma certa dificuldade, é certo, para ver se encontramos
um processo de termos maior firmeza nas" soluções a adoptar.
No entanto,
toda a economia desta proposta presumo que se deverá não tanto à preocupação
com a quantidade, mas sim com a qualidade dos cidadãos. E se, de hoje para
amanhã, aqueles que perderem a nacionalidade -por razões que nos são
absolutamente estranhas- vierem a readquirir a nacionalidade portuguesa pelos
mecanismos que aqui são propostos, dentro do contexto, que nós temos a pretensão
de definir, do povo português tal como desejamos que ele seja, penso que serão
bem-vindos e decerto não irão constituir uma quantidade que, porventura, cause
problemas para a administração de todos os negócios públicos referentes à
aceitação de um maior número de nacionais portugueses do que aquele que
eventualmente fosse previsível.
Em relação à
primeira questão, penso que ela se situa precisamente ao mesmo nível e,
efectivamente, não tenho elementos para poder responder concretamente a essa
questão que o Sr. Deputado levantou. Na realidade, seria essencial que
possuíssemos esse elemento, mas penso, francamente, que é muito difícil. A não
ser que, para que se adiantasse algum número, se recorresse ao domínio das
conjecturas, com possibilidades de erro muito grandes e muito graves.
Quanto à
questão que o Sr. Deputado Magalhães Mota me colocou penso que só depois de
esta Assembleia estabelecer o critério definitivo quanto à aprovação desta
proposta, ou nos termos em que ela for julgada por mais conveniente, é que se
terão de desenvolver os mecanismos convenientes em relação à efectivação das
comunicações a realizar com a Comunidade Económica Europeia. De contrário,
penso que era avançar demasiado, era levar o carro à frente dos bois. Penso que
só depois de estabelecido, de forma definitiva, o critério é que se entrará em
contacto com a Comunidade Económica Europeia para se lhe dar conta do que
soberanamente for decidido aqui.
[iii] Decreto do Presidente da República nº 7/2000 e
Resolução da Assembleia da República nº 19/2000, ambos de 6 de Março
[iv] Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de Abril
[v] Um casal que não tenha filhos, viva em Portugal ou no
estrangeiro, pode hoje registar o nascimento de uma criança no registo civil
português em qualquer conservatória, por si ou por um procurador, sem que a
criança, verdadeiramente exista.
1 - Todos os documentos que tenham sido digitalizados devem ser
destruídos imediatamente.
[vii] Artigo 5.º
Actos praticados por órgãos especiais
1 - Os actos de registo praticados nas condições previstas no artigo
9.º são obrigatoriamente integrados em suporte informático do registo civil
nacional e, na ordem interna, provam-se pelo acesso à base de dados do registo
civil ou por meio de certidão.
2 - Para a integração referida no número anterior, as entidades
referidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º devem lavrar os assentos, bem
como os averbamentos dos factos que decorram dos mesmos, em suporte informático
e disponibilizá-los na base de dados do registo civil nacional.
3 - A integração dos assentos de nascimento, de declaração de
maternidade e de perfilhação em suporte informático do registo civil nacional
só se efectua após atribuição de cota ou averbamento electrónicos pela
Conservatória dos Registos Centrais.
4 - Para a integração referida no n.º 1, as entidades referidas nas
alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 9.º devem enviar, preferencialmente por via
informática, as cópias autênticas ou os duplicados dos assentos às
conservatórias do registo civil ou à Conservatória dos Registos Centrais, de
acordo com as regras de competência previstas nos artigos 10.º e 11.º
5 - Os assentos e processos de registo consulares devem ser
disponibilizados na base de dados do registo civil nacional, nos termos
definidos por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas
dos negócios estrangeiros e da justiça
[viii] Criado pela Base XXXIX da Lei nº 2098, de 29 de julho
de 1959
[ix] Portaria
n.º 1224/2009, de 12 de Outubro
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