A menos
de uma semana das eleições, foi montada, não se sabe por quem, uma campanha
política adequada a anular o processo eleitoral, tal como ele se encontra
configurado na Constituição.
As
campanhas eleitorais regem-se, nomeadamente, pelos princípios liberdade
de propaganda, da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas
candidaturas, da imparcialidade
das entidades públicas perante as candidaturas[1].
Apesar da crise generalizada que afetou os
meios de comunicação social clássicos, parece-me indiscutível que estão os
mesmos obrigados a respeitar esses princípios constitucionais et pour cause a
adotar políticas editoriais que reduzam ou restrinjam a liberdade de propaganda
dos candidatos às eleições.
Nas eleições para a Assembleia da República
de 2019 a campanha eleitoral foi anulada por via de uma campanha de comunicação
que lançou suspeitas sobre a atuação do primeiro ministro e do presidente da República
no caso do roubo das armas dos paióis de Tancos, inculcando na opinião pública
a ideia de que teriam conhecimento de uma encenação para a entrega das armas
furtadas.
O facto catalisador da campanha, foi a
divulgação, a 25 ou 26 de setembro de 2019 da acusação proferida pelo Ministério Público
no inquérito com o nº 661/17.1TELSB.
O despacho de acusação foi proferido às 20
horas do dia 25 de setembro e seguiu para
os meios de comunicação social em tempo record, provavelmente, mesmo antes de
terem sido notificados os arguidos.
Antes mesmo da assinatura da acusação, a agência
Lusa emitiu, às 19h10, uma noticia informando que “processo do furto de
armas de Tancos entrou hoje na campanha eleitoral para as legislativas”.
Isto não seria possível
sem uma intervenção ativa do Ministério Público no processo eleitoral que
passa, obviamente pela comunicação social.
O despacho de acusação tem 556 páginas e resulta de uma inquérito com
mais de 15.000 páginas[2],
tendo caído como uma bomba pré-anunciada no espetro mediático, a meio da campanha eleitoral.
O que aconteceu indicia a montagem, por
alguém, com a necessária participação do Ministério Público, de uma meticulosa
campanha de propaganda, adequada a anular o processo eleitoral, no que ele tem
de mais relevante: a liberdade de propaganda dos respetivos programas
eleitorais, garantida pela Constituição.
Os produtores e editores de notícias – os jornalistas
– estão obrigados a “informar com rigor e
isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da
opinião”[3].
Mas não podem, em nenhuma circunstância, mesmo que tenham consciência da
perversão do processo eleitoral, sonegar informação tão relevante como aconteceria
se ocultassem a acusação do Ministério Público, ou reproduções dela, já trabalhadas
por alguma agência.
Perante o conhecimento dessa
importante peça processual, não podiam deixar de difundir a informação
relevante, sem prejuízo do cumprimento da obrigação de rigor informativo e da
rigorosa separação dos factos e da opinião, em conformidade com as regras legais
que regem o exercício do jornalismo.
Entendo que os jornalistas
não têm uma função pedagógica; porém, o bom cumprimento da obrigação de rigor
não lhes permite manipular os factos induzindo os cidadãos em conclusões
erradas.
Ora, o que os meios de
comunicação em geral fizeram foi passar a mensagem de que determinados factos
se tinham verificado e de que determinadas pessoas agiram com determinada
motivação, sem esclarecer que nada, por enquanto, está provado.
A acusação, em processo
penal, é apenas a opinião - parcial e unilateral - do Ministério Público, que,
em muitos casos, se revela sem nenhum fundamento, acabando pela absolvição dos
acusados.
Esta acusação é um
documento de 556 páginas com que o Ministério
Público conclui um inquérito de mais 15.000
páginas que, pela natureza das coisas, nenhum jornalista conhece.
Ninguém pode concluir o que quer que seja
sobre essa acusação, sem que seja produzida prova em audiência de julgamento.
Os jornalistas têm o direito de difundir
notícias sobre a acusação; mas não podem tirar conclusões sobre o que nela se contém, sem que haja um julgamento
que dê como provados ou não provados os factos nele contidos.
Uma coisa é difundir, de forma rigorosa,
informação sobre o conteúdo da acusação; outra, completamente diversa, é extrair
conclusões sobre factos que têm que ser julgados por um tribunal, como se
alguém pudesse substituir-se ao julgador ou condicionar o julgamento.
Parece-me óbvio que os jornalistas tinham
que difundir noticias sobre o conteúdo da acusação; mas penso também que há
manifesto abuso de direito quando procedem a julgamento de factos cujas provas
não conhecem, tomando partido pela acusação sem provas, a benefício de um
marketing judiciário que é ofensivo do Estado de direito democrático.
O processo de Tancos vai ter o seu curso
natural; e terá um julgamento, se a acusação se afirmar viável e houver um
despacho de pronúncia, o que não é, ainda, claro que aconteça.
Uma coisa é, para já, clara: a Polícia Judiciária
Militar foi decapitada pelo Ministério Público, com gravíssimas consequências
para a República e para as Forças Armadas. E tudo indica que será humilhada
mais tarde, com a intervenção de cadastrados e toxicodependentes provavelmente
corrompidos por um esquema idêntico ao usado na delação premiada.
Seja como for, o que é necessário é deixar
correr o processo e esperar a sua fase mais nobre: a do julgamento.
O que é importante investigar, neste
momento, é o processo de comunicação que causou gravíssimos prejuízos ao
processo eleitoral, podendo contribuir para a deformação dos resultados
eleitorais.
Nenhuma entidade pública pode, à luz da
lei eleitoral para a Assembleia da República “intervir
direta ou indiretamente em campanha eleitoral nem praticar quaisquer atos que
favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra ou
outras, devendo assegurar a igualdade de tratamento e a imparcialidade em
qualquer intervenção nos procedimentos eleitorais”[4].
No dia 26 de setembro de 2019, a Procuradoria Geral da República difundiu uma
discreta
nota à comunicação social.
No mesmo dia – ou talvez antes – o texto da acusação foi divulgado
junto das redações e de jornalistas, em termos adequados a permitir o desenvolvimento
de uma campanha capaz de anular ou reduzir de forma brutal a liberdade de
propaganda dos candidatos às eleições.
Estamos, inquestionavelmente, perante uma brutal ingerência no processo
político das eleições à Assembleia da República, perante uma manipulação do
processo eleitoral, em termos que têm alguns pontos que são inovadores, por
relação ao que tem acontecido em outros países.
Carlos Matos Gomes – um capitão de abril – escreveu um interessante
artigo sobre o fenómeno das falsas bandeiras.
Eu vou mais longe e questiono quem fez isto, sabendo como sabia e
não podia deixar de saber que ia perturbar o processo eleitoral como perturbou,
impedindo que os concorrentes às eleições pudessem exercer a sua liberdade de
propaganda.
A informação que tem vindo a ser publicada nos diversos meios de
comunicação social indicia a preparação prévia de uma campanha de comunicação que
seria impossível sem um trabalho criterioso e seletivo sobre a matéria da
acusação, trabalho esse desenvolvido por especialistas na área da comunicação.
Quem participou nesse processo de comunicação agiu de forma dolosa,
pois que não podia deixar de concluir previamente que iria prejudicar, de forma
decisiva, o processo eleitoral.
O despacho de acusação foi
profusamente distribuído e está disponível em diversos sítios da Internet. Porém
não é admissível às pessoas que a ele tenham acesso, que o difundam, ou sequer
citem os respetivos endereços, atento o
disposto no artº 86º do Código de Processo Penal.
Ninguém sabe qual é a amplitude do segredo de justiça neste
processo e quem ouse publicar a acusação – que, em boa verdade é pública –
corre o risco de incorrer em crime de violação do segredo de justiça.
Portugal tem um regime de segredo de justiça absolutamente
perverso e prejudicial tanto do direito de defesa como do direito dos cidadãos
à informação. In casu, a acusação corre por aí de mão em mão, está disponível
para muitos, mas quem a difundir corre o risco de violar o segredo de justiça.
Isto é especialmente grave num momento eleitoral e quando – como era
intenção de montou a campanha e nela participou – a referida acusação do Ministério Público se
transformou no objeto principal da campanha eleitoral.
Podemos estar perante uma operação montada por agências de
comunicação, no cumprimento de contratos com clientes que lhes encomendaram os
serviços, à semelhança do que aconteceu em França, nos Estados Unidos e no Brasil,
com a manipulação das redes sociais.
Em Portugal foram usados os meios de comunicação social tradicionais,
ao invés das redes sociais, porque a população é envelhecida e o percentual
atingido pelas redes sociais é muito baixo.
Para quem conhece a acusação é forçoso concluir que uma boa parte
das “noticias” não deriva da mesma mas de manipulação de alguns dos seus passos,
que pode decorrer de trabalhos sobre fontes indiretas, em vez do original.
Uma coisa é o direito fundamental do acesso dos jornalistas às
fontes de informação. Outra, completamente diversa, é a manipulação da manipulação
no plano das fontes.
Essa manipulação – em que se integra ao fornecimento aos jornais e
aos jornalistas de partes da acusação, tratadas de forma seletiva – pode ter
sido feita por iniciativa de alguns partidos políticos ou do próprio Ministério
Público.
Esta campanha nunca será o que deveria ter sido se não fosse perturbada
pela manipulação do caso de Tancos.
É indispensável que, para evitar a repetição de perturbações deste
tipo se investigue o que aconteceu, especialmente no que se refere à divulgação
da acusação e de partes da mesma aos jornalistas e a terceiros.
Muito mais importante do que o assalto a Tancos é o assalto ao
respetivo processo, que era suposto estar protegido pelo segredo de justiça,
determinado pelo juiz de instrução, de forma a apurar quem montou esta operação
de manipulação de informação, adequada a destruir ou, ao menos, a prejudicar o
processo eleitoral.
Mais importante do que repisar sobre o processos de Tancos – que é
da Justiça – seria que a Assembleia da República convocasse uma comissão
parlamentar de inquérito para apurar os detalhes deste autêntico golpe contra o
regime democrático visando apurar quem são os responsáveis pelo mesmo e,
especialmente, se houve ou não uma intervenção politica do Ministério Público,
visando a perturbação do processo eleitoral.
Miguel Reis
28/9/2019
[1] Artº
113º,3 da Constituição
[2] A última
pagina da acusação corresponde à pagina 15196 do processo.
[3] Artº 14º
do Estatuto do Jornalista
2 comentários:
Subscrevo, na integra, a sua análise e envio-lhe os parabéns pela frontalidade edenôdo com que "denuncia" a existência, no seio do MP, de claros esquemas lesivos da actividade democrática portuguesa.
Absolutamente delirante, o comentário, se me faço entender...
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