Este blog começou em 2006, antes da crise que levou à falência o banco Lehman Brothers.
Havia por aí uns indícios de que as coisas não estavam a correr bem no judiciário, em Portugal, mas ninguém imaginaria que a destruição do sistema tivesse uma velocidade tão grande.
Portugal tinha - teve até há pouco tempo - um sistema de justiça e um aparelho judiciário sólidos e coerentes.
Passaram mais de 680 anos sobre a data em que D. Afonso IV criou a figura do "juiz de fora", para responder à necessidade de uma justiça pública isenta. Isso aconteceu no longínquo ano de 1327, que ficou na História da Justiça de Portugal como um marco notável.
Foi uma machadada brutal na arbitragem daquele tempo, desenvolvida, por regra por cortesãos mais dados à sensibilidade dos salões do que ao rigor dos cânones.
Os tribunais foram nascendo, um por cada comarca, marcando um poder independente, por relação ao do rei.
Com a I República foi consolidada a independência da Justiça, cuja organização passou a serf da competência exclusiva do Congresso, por força da Constituição de 1911, que consagrou os tribunais como órgãos de soberania.
A Constituição de 1933 reafirmou essa ideia e desenvolveu um vasto intenso programa de instalação de edifícios judiciários em todo o território.
Dando continuidade à lógica em que assentou o desenvolvimento do nosso sistema de justiça, as comarcas adaptaram as suas áreas, grosso modo, às áreas dos municípios.
Tenho a ideia de que todas elas têm pelo menos um edifício, por regra de excelente qualidade, projetado para sobreviver à fúria do tempo.
São, salvo erro, 233 comarcas, algumas delas com mais de um edifício judiciário.
A reforma introduzida pela Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, reduziu as comarcas a 23.
Foi agora anunciado o projeto de regulamentação dessa lei, que faz antever muito mais do que um simples agravamento do mau estado em que a justiça se encontra.
Apesar dos meios tecnológicos a que hoje pode recorrer não fácil mudar um sistema assente em 233 comarca para um outro em que estas são reduzidas a 23.
Só quem não conheça com um mínimo de consistência o modo de funcionamento dos tribunais pode arriscar uma reforma com estas caraterísticas.
Não se vislumbra a racionalidade de um conjunto de reformas que têm marcado a Justiça nos últimos tempos.
O governo de Passos Coelho propôs à Assembleia da República - e esta aprovou - um novo Código de Processo Civil, que constitui um plágio deformador do texto anterior.
Nem o governo nem os parlamentares tiverem a vergonha e o pudor suficientes para, pelo menos, re-escreverem o novo código com as suas próprias palavras, limitando-se a plagiar a maioria do texto anterior.
Mas, apesar disso, conseguiram destruir as coisas mais importantes que a Justiça dever oferecer: rigor e segurança jurídica.
Ora, o que o novo Código de Processo Civil veio fazer, de forma absolutamente inútil, foi destruir esses valores, decapitando, de um momento para o outro, milhares de operadores que estavam preparados para resolver os problemas jurídicos que lhe lhes eram apresentados e que, de um momento para o outro, deixaram de o estar.
Sem adiantar qualquer juízo sobre a bondade ou a maldade da nova lei, que, à partida, peca por ser um desavergonhado plágio da anterior, parece-me evidente que, num período difícil como aquele que Portugal vive, não havia nenhuma necessidade de desestabilizar o sistema de justiça.
Por um lado, são elevadíssimos os custos operacionais da adaptação a uma nova lei, tanto por parte dos juízes como por parte dos advogados, com inevitáveis reflexos na produtividade do sistema judiciário.
De outro lado, como é próprio destas realidades, muito tempo demorará até que se encontre, de novo, a perfeição.
Mais grave me parece ser a reforma das leis da organização judiciária.
Tal reforma tem custos brutais para o país e para todos os operadores, custando milhões e milhões de horas a simples operação de redistribuição dos processos.
Pessoalmente, não acredito que a lógica do small is beautifull, que marcava a nova organização judiciária, cuja gestão era confiada a estruturas locais, possa ganhar alguma coisa com a concentração ao nível dos distritos.
Estou pessoalmente convencido de que o reduzidíssimo número de escândalos relacionados com desfalques de dinheiro nos tribunais se deve ao facto de tudo ser tão repartido e tão fiscalizado localmente, pelos mecanismos de proximidade, que nem o risco compensa nem os valores justificam que alguém tenha a tentação de pôr a mão na massa.
Os monstros que vão nascer desta nova reforma não serão, por natureza, marcados pela mesma transparência nem pelo controlo de proximidade que a (ainda) atual organização judiciária permitiam.
Com a organização das comarcas a nível distrital, as palmadas passam a ter outra viabilidade.
Por detrás de tudo isto, paira ainda o fantasma do imobiliário, visto à luz da nova lógica das guerras.
A redução de mais 200 comarcas ao simples número de 23 viabilizará fantásticos negócios imobiliários.
Foram feitos testes ao longo de anos.
Pouca gente se chocou com a destruição de milhares de casas de cantoneiros ou de guardas florestais existentes no país.
Pouca gente se chocou com o encerramento (que, aliás, continua) de milhares de escolas c eom a destruição de muitos dos seus edifícios.
Pouca gente se chocará se os edifícios dos tribunais foram abandonados para, no devido tempo, potenciarem negócios privados.
Temos uma experiência feita, com o abandono do Tribunal da Boa Hora, no centro de Lisboa, entretanto vendido à Câmara e depois recomprado, sem que seja claro o seu destino.
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