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Em finais de agosto de 2016, fui procurado, no escritório de
São Paulo, por um funcionário do Consulado Geral de Portugal, que me contou uma
estranhíssima história.
Disse-me o homem que andou meses a usar os logins e passwords de outros funcionários, para processar desde registos de
nascimento, a registos de casamento e de
óbito, passando pela requisição de cartões de cidadão e de passaportes.
Estava em convencido de, que, apesar da autorização, o
funcionário em causa tinha procedido à falsificação de milhares de documentos,
por não me parecer nem legal nem eticamente admissível que alguém pudesse usar
os dados de acesso a plataformas informáticas tão importantes como as do
registo civil, do cartão de cidadão ou dos passaportes para processar atos, como se dos respetivos
titulares se tratasse.
Puro engano.
O Ministério Público considera que não há nenhum ilícito
desde que o titular dos dados de acesso tenho autorizado o seu uso, mesmo que o
utente não seja funcionário, como era o caso.
O meu primeiro problema como advogado foi facilmente resolvido:
o meu cliente não foi sequer acusado, apesar de ter assumido que falsificou, embora
de boa fé, muitos documentos.
Conto aqui a história, step
by step, omitindo os nomes dos intervenientes, no respeito pelos seus dados
pessoais.
Uma queixa no DIAP de Lisboa
No dia 28 de agosto
de 2016, entreguei no DIAP uma queixa, que deu origem ao Processo nº 2321/16.1T9LSB da 4ª Secção.
Escrevi eu nessa queixa:
Exmº Senhor Procurador
da República junto do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa
FULANO..., de
nacionalidade portuguesa, casado, titular do cartão de cidadão nº ..., residente na Avenida ... apartamento...,
São Paulo, CEP .... SP, Brasil, vem apresentar denúncia criminal, para os termos do disposto no artº 242º,1, al. b) do Código de Processo Penal[1], por
referência ao artº 386º,1 al. d)[2] do
Código Penal e com os fundamentos seguintes:
1.
O denunciante é casado com um nacional
brasileiro, residindo no Brasil desde.....
2.
Em 22 de
janeiro de 2015, foi contratado pela sociedade ETICASP ASSESSORIA E SER EMPRE
LTDA ME, com sede em Osasco, São Paulo, “para fins de experiência”, com as
funções de “assistente administrativo”, nos termos do documento que se junta
como Documento nº 1 e que se dá por reproduzido.[3]
3.
Este
contrato teve o seu término em 7/3/2015, continuando, porém a prestação laboral
até ao dia 9 de agosto de 2016.
4.
Apesar de
constar no contrato que o local de trabalho era “o MESMO DA EMPRESA”, o
denunciante sempre trabalhou apenas no Consulado Geral de Portugal em São
Paulo, na Rua do Canadá, 324, CEP 01436-000 São Paulo, Brasil.
5.
Nos termos
do contrato, deveria o denunciante “trabalhar para a empregadora (a referida
sociedade) na função de assistente administrativo e mais funções que vierem a
ser objeto de ordens verbais, cartas ou avisos, segundo as necessidades da
Empregadora desde que compatíveis com as suas atribuições”.
6.
No início
da sua atividade, o denunciante foi incumbido por ALINE..., responsável pelos
empregados da ETICASP no Consulado Geral
de Portugal em São Paulo, de atender telefones desse consulado e de prestar
informação aos utentes.
7.
Essas
tarefas foram iniciadas sem nenhuma informação prévia, para além da audição de
outro “funcionário” durante dois ou três dias, apesar de a informação a prestar
aos utentes ser de grande complexidade, nomeadamente jurídica, abrangendo áreas
tão dispares como as seguintes:
7.1. Nacionalidade portuguesa
7.2. Informações sobre o conteúdo da base de
dados SIRIC
7.3. Informações sobre vistos
7.4. Andamentos de processos de toda a natureza
com curso no SIRIC e no SGC.
8.
Passados dois ou três meses foi-lhe ordenado que
passasse a usar a identidade dos funcionários JOSÉ... , ANA... e dE outros
funcionários que nunca conheceu, bem como as senhas seguintes:
8.1. Para o SIRIC
·
USUÁRIO:
pdgrn\...
·
SENHA:
lk58vx
8.2. Para o SGC
·
USUÁRIO:
aa...
·
SENHA:
aazevedo
8.3. Para a base de dados do cartão de cidadão
·
USUÁRIO:
ali...
·
Senha:
alispbr
8.4. Para acesso à base de dados do passaporte
eletrónico (PEP)
·
USUÁRIO:
BR...
·
Senha: consulado
9.
Com estas senhas, passou o denunciante a, num
primeiro momento, aceder a todas essas bases de dados para satisfazer pedidos
de informação que lhe eram feitos por telefone, sem qualquer controlo da
identidade de quem estava do outro lado da linha.
10. Tudo no cumprimento de ordens da referida
ALINE ....
11. Em setembro de 2015 passou a processar atos
de registo civil, nomeadamente os seguintes:
·
Registo de
nascimento atributivos de nacionalidade portuguesa;
·
Transcrições
de casamento;
·
Transcrições
de óbitos.
12. Em
conformidade com as ordens da referida ALINE... o ora denunciante agia como se fosse o
funcionário JOSÉ CARLOS..., escrevendo, no final do assento “por competência própria: JOSÉ CARLOS...”.
13. O
denunciante não sabe quantos registos processou, pois que essa atividade se
iniciou em agosto ou setembro de 2015 e ele só começou a guardar cópias das
listagens dos registos em janeiro de 2016.
14. Só
entre janeiro e agosto de 2016, o ora denunciante processou
·
329 registos de nascimento
·
186 registos de casamento
·
71 registos de óbito
15. Tudo como se vê da listagem que junta como
Documento nº 2.
16. Para além do denunciante, processavam ( e
continuam a processar) atos de registo civil, com identidade de outros funcionários, os seguintes trabalhadores, outrossim
vinculados à mesma sociedade comercial:
·
ALINE..., que
usa a identidade da funcionária VIVIANE...:
·
ANGÉLICA...,
que usa a identidade do funcionário GUILHERME...;
·
ROZÂNGELA... que usa a identidade do funcionário ABILIO ....
17. Antes de ser usada pelo denunciante a
identidade e a senha do SIRIC (José Carlos...) era usada por ANA....
18. A partir de certo momento, o denunciante
passou a sentir-se numa posição desconfortável com esta situação, tendo pedido
esclarecimentos à referida ALINE e ao funcionário
ABILIO ..., os quais o informaram que “era assim que o sistema estava
implementado”, sob a responsabilidade de
sucessivos cônsules gerais e por ordem deles, porque não era possível aos
“funcionários terceirizados” terem as suas próprias senhas.
19. Entre os meses de agosto/setembro de 2015 e
agosto de 2016, o denunciante emitiu centenas de cartões de cidadão e de
passaportes, agindo como se fosse outro funcionário e com a sua identidade e
dados eletrónicos.
20. O denunciante foi-se sentindo cada mais
desconfortável, o que terá sido notado pelos seus superiores hierárquicos, a
quem tal postura não passou despercebida.
21. No dia 9 de agosto de 2016 foi chamado pela
referida ALINE ... e por NEREU..., o dono da ETICASP à copa do Consulado de
Portugal, tendo-lhes os mesmos anunciado que, a partir daquele momento, por
ordem expressa do Consulado, cessava a relação laboral.
22. Foi-lhe entregue o Documento nº 3, assinado
pelo referido NEREU e pelo ora denunciante.
23. Solicitou o denunciante que lhe permitissem
falar com o cônsul geral, o que foi denegado, sendo ameaçado pela ALINE de que
seria expulso do consulado pelos seguranças.
24. O denunciante pediu uma audiência ao cônsul
geral, Dr. Paulo..., o qual o recebeu no dia 16 de agosto, tendo-o informado de
que desconhecia a razão do despedimento e que não podia interferir no mesmo,
pelo que lhe apresentou desculpas pela forma como foi tratado dentro do
Consulado.
25. Só depois desta data – tendo ficado no
desemprego e com tempo para refletir sobre tudo isto – ocorreu ao denunciante
consultar um advogado.
26. E só depois de tal consulta se apercebeu de
que, embora sem consciência da ilicitude e sem culpa, terá cometido um sem número de crimes de falsificação de documentos, que vem
denunciar, pedindo que ser proceda à respetiva investigação.
27. Esta situação de uso generalizado da
identidade de funcionários do quadro pelos “funcionários terceirizados” é do
conhecimento de todos os funcionários, que há muito tempo vêm reclamando de tal
facto.
Do direito
28.
Dispõe o artº 256º do Código Penal, sob a
epígrafe de “falsificação ou contrafação de documento”:
1 - Quem,
com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si
ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar
ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos
componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos
componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar
ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer
dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas
anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento
falsificado ou contrafeito;
29. O
artº 256º,4 dispõe que “se os factos referidos nos n.os 1
e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é
punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”
30. Dispõe
o artº 255º do Código Penal que, para efeito do disposto no presente capítulo,
considera-se:
a) Documento - a
declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou
qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou
para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é
idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja
dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal
materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente
relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo
círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta;
b) (...)
c) Documento de
identificação ou de viagem - o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o
passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de
condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados
a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou
situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens,
designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação,
assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível; (...)
31. O ora denunciante não tem formação jurídica
e nunca lhe passou pela cabeça que pudesse – sem querer - estar a realizar um
crime.
32. Agiu sob ordens dos seus superiores e sem
intenção criminosa e sem culpa.
33. E mal teve consciência de que os factos acima
denunciados integram a prática de crimes, tomou a iniciativa de os denunciar,
oferecendo toda a sua colaboração à Justiça.
34. O
denunciante nunca teve a consciência de que a inserção do nome de um terceiro
funcionário e o uso da respetiva senha tanto no SIRIC, como nas bases de dados
do cartão de cidadão ou do passaporte eletrónico eram elementos essenciais para
a realização objetiva de registos e de documentos falsos.
35. Só agora, depois de analisada a situação
com o advogado signatário, tomou
consciência de que, embora sem intenção criminosa e sem culpa, realizou todos
esses registos falsos e fez emitir todos esses documentos falsos, cuja anulação
não pode deixar de requerer, para o que, no momento próprio se constituirá
assistente.
36. O denunciante não quer fugir às
responsabilidades. Bem pelo contrário: não quer, em nenhuma circunstância,
poder ser responsabilizado pelas falsificações de documentos que processou, sob
instruções da sua própria entidade patronal e sob o alto patrocínio do
Consulado Geral de Portugal.
37. Dúvidas não há para o signatário de que
todos os registos processados nestas circunstâncias (tantos os que foram feitos
pelo denunciante como os que foram feitos pelos demais “funcionários
terceirizados” são nulos, porque são falsos.
38. O mesmo é valido para os cartões de cidadão
e para os passaportes emitidos com identidade falsa.
39. Esta prática criminosa foi organizada, em
termos absolutamente obscuros, de forma concertada, pela referida sociedade
comercial e pelo Consulado de Portugal em São Paulo.
40. Tanto quanto se sabe, a referida ETICASP só
trabalha no Consulado Geral de Portugal, tendo livre acesso a todos os setores.
41. A sociedade ETICASP tem entre 16 e 18 “funcionários
terceirizados”.
42. Embora todos tenham um ”crachat” idêntico ao
que se junta como Documento nº 4, nenhum usa, como não usava o ora denunciante,
a sua identidade, agindo por regra com a falsa identidade de funcionários do
quadro.
43. Os factos referidos, para além de serem
subsumíveis a crimes de falsificação de documento ofendem os bens jurídicos
protegidos pelo artº 348º-A do Código Penal.
44. O Consulado Geral de Portugal em São Paulo e
a referida ETICASP ofenderam, de forma grosseira, a boa fé do denunciante, pelo
que devem ser responsabilizados, no plano da responsabilidade civil, pelos
enormes danos, maxime de natureza moral, que lhe causaram, para que, no momento oportuno o denunciante se
constituirá assistente e deduzirá o devido pedido cível.
E concluímos assim:
Nestes termos e nos melhores de direito
1. Requer a Vª Exª que promova a abertura da
pertinente investigação criminal, começando por pedir esclarecimentos ao
Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre o “esquema” fraudulento acima
denunciado;
2. Requer a Vª Exª que adotem as providência
necessárias para pôr termo à falsificação de documentos que continua a fazer-se
no Consulado Geral de Portugal em São Paulo e, provavelmente, no mesmo esquema,
em outros consulados de Portugal no Brasil;
3. Requer a Vª Exª que providencie no sentido
da declaração de nulidade dos atos de registo civil e das emissões de passaporte e de cartão de
cidadão processadas pelo denunciante, com falsa identidade.
Ofereceram-se dez testemunhas, todas funcionários “terceirizados”
do Consulado Geral de Portugal em São Paulo.
Ninguém foi ouvido no processo; nem o denunciante nem as
testemunhas.
O processo foi arquivado e o fabrico de documentos por via
da intervenção de falsos funcionários continuou, tanto quanto se sabe, com o
alto patrocínio de todas as autoridades que têm conhecimento destes factos.
[1] Artº
242º do Código de Processo Penal:
1 - A
denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos:
a) Para as entidades policiais, quanto a todos os crimes de que
tomarem conhecimento;
b) Para os funcionários, na aceção do artigo 386.º do Código
Penal, quanto a crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas
funções e por causa delas.
1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo; e
c) Os árbitros, jurados e peritos; e
d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante
remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido
chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma atividade
compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas
circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas
participar.
2 - Ao funcionário são
equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores
de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação
maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços
públicos.
3 - São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do
disposto nos artigos 335.º e 372.º a 374.º:
a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de
organizações de direito internacional público, independentemente da
nacionalidade e residência;
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