O despacho de arquivamento
A posição do Ministério Público é simultaneamente
interessante e controversa.
Fiquei, a um título, muito satisfeito e muito triste.
Satisfeito porque o meu cliente, que se apresentou à Justiça
de corda ao pescoço, foi, imediatamente, absolvido, por via do arquivamento do
processo.
Triste, porque me parece que dada uma machadada brutal na
segurança dos documentos portugueses.
O que o Ministério Público diz, muito sinteticamente, é que é
lícita a utilização por terceiros – incluindo estrangeiros - dos logins e passwords de acesso dos
funcionários a plataformas tão importantes como a do registo civil ou as dos
cartões de cidadãos e passaportes.
No dia 2/9/2016, foi proferido pelo Procurador Jorge Guilherme
Pereira de Araújo Barbosa Teixeira um despacho de arquivamento com o seguinte
teor:
“Nos presentes autos
está em causa a denúncia que André... faz, contra si mesmo e contra outros funcionários
que consigo prestaram serviço em regime de colaboração externa no Consulado-Geral
de Portugal em São Paulo, no Brasil.
Em causa esta o uso de
nomes de usuário e correspondentes palavras-passe de outras pessoas, funcionários
do Consulado, pois não seria possível a criação de nomes de usuário e de
palavras-passe para o denunciante e pessoas em idêntica situação de colaboração
externa.
Tais nomes e
palavras-passe foram usados para fins legítimos, atinentes ao exercício das
funções normais do Consulado.
O denunciante imputa
aos denunciados (a si mesmo e a outros responsáveis pelo referido uso) a prática
de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art." 256.° do Código
Penal.
Comete tal crime:
"Quem, com intenção
de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra
pessoa beneficio ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executor ou encobrir
outro crime:
a) Fabricar ou
elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou
alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da
assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar
falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a
que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio,
facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;....
É manifesto que o
denunciado uso não tinha qualquer intenção de causar prejuízo ao Estado ou a
outra pessoa, nem de obter para si mesmo ou para outra pessoa beneficio ilegítimo,
nem de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime - para além de que
a conduta não se subsume ao tipo legal em causa, mas antes ao tipo legal do
crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artº 6." da Lei do Cibercrime -
pelo que não preenche o tipo legal do crime de falsificação (ainda que pudéssemos
no caso estar a referir uma "assinatura" para efeitos de enquadramento
da conduta como sendo de abuso de assinatura.
Poderiam os factos
denunciados integrar a prática de um ou mais crimes de acesso ilegítimo. Ora,
comete tal crime quem "sem permissão legal ou sem para tanto estar
autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de
parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático" (artº 6.°,
n.° 1, da Lei n.° 109/2009, de 15.09 - Lei do Cibercrime).
Como resulta claro do
teor da denúncia apresentada, o uso feito para aceder ao sistema foi-o com
autorizado do proprietário do sistema, pelo que também não preenche tal tipo
legal de crime a conduta em causa.
Estamos, assim,
perante factos que não constituem crime, pelo que se impõe proceder ao
arquivamento do inquérito por tal motivo.
Face ao exposto. porque
os factos não constituem crime, determino o arquivamento do inquérito nos
termos do artº 277.° nº 1 do Código de
Processo Penal.
Notifique o
denunciante e seu Ilustre Mandatário por via postal registada.”
Fica claro destes despacho que o titular da ação penal
considera que é lícito a qualquer funcionário que tenha acesso a uma base de
dados da administração pública, pra processar atos tão importantes como os do
registo civil, ceder os dados de acesso a outras pessoas, incluindo a
estrangeiros, permitindo que elas processem tais atos, ainda que para isso não
sejam competentes.
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