01 junho 2006

31/05/2006

Fui hoje ao Tribunal de Sátão para assistir à inquirição de três testemunhas arroladas num processo de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa em que é ré a esposa de um cidadão português natural de Rio de Moinhos.
Achei estranho que os senhores desembargadores da Relação de Lisboa tivessem deprecado a inquirição àquele tribunal. Neste tipo de processos, a Relação funciona como primeira instância e, por isso mesmo, as testemunhas deveriam ter sido inquiridas por vídeo-conferência.
Dispõe o artº 623º,1 do Código de Processo Civil:
«As testemunhas residentes fora do círculo judicial, ou da respectiva ilha, no caso das Regiões Autónomas, são apresentadas pelas partes, nos termos do n.º 2 do artigo 628.º, quando estas assim o tenham declarado aquando do seu oferecimento, ou são ouvidas por teleconferência na própria audiência e a partir do tribunal da comarca da área da sua residência ou, caso nesta não existam ainda os meios necessários para tanto, a partir do tribunal da sede do círculo judicial da sua residência.»
Parecia-me elementar que, funcionando o Tribunal da Relação como tribunal da primeira instância, neste tipo de processos, deveriam as testemunhas ser ouvidas por aquele sistema mas, lendo bem o texto e o seu conteúdo literal entendi nem sequer suscitar o problema.
Correria o risco de ver indeferido o pedido e de ser condenado numa violenta sanção ao abrigo de uma disposição discricionária que permite aos juízes fixar o valor das condenações em custas quase pelo valor que entendam.
Uma qualquer reclamação para o Tribunal Constitucional que venha a ser indeferida custa, quase por regra, 20 unidades de conta, o que representa 1.780 € ou, na moeda antiga, a módica quantia de 357 contos.
Já passou o tempo em que alguém que se sentisse com razão poderia recorrer até à última instância sem que para além de perder a razão perdesse também a fortuna.
Hoje isso não é possível e o modo como tudo isto se transformou é horrível, porque sintetiza, a meu ver dolosamente, um ânimo de denegação de justiça.
Já passou o tempo em que era dada aos cidadãos a hipótese de discutir no Tribunal Constitucional coisas tão «banais» como a qualidade da certificação dos equipamentos usados para medir o álcool ingerido. Hoje, essas pequenas coisas, de que dependem a qualidade da legalidade e da constitucionalidade são impossíveis para qualquer cidadão médio.
Gastei seis horas do meu dia na viagem para Sátão, quando a diligência que fui acompanhar não demorou mais de três quartos de hora.
Aproveitei esse tempo para ouvir música clássica e para reflectir sobre o estado da justiça, coisa que faço, quase sempre nas minhas viagens, como se isto fosse uma ideia fixa.
Talvez eu esteja doente, porque essa preocupação me acompanha para todo o lado quando não estou ocupado com qualquer coisa muito concreta e objectiva, geralmente conexa com tal estado.
Nasci e fui educado numa família rural marcada pelo rigor de uma religião que ninguém ousava discutir e pelo imperativo de uma fé que não podia pôr-se em causa. Aprendi na escola primária que os nossos navegadores saíram de Sagres e do Tejo, em caravelas marcadas pela cruz de Cristo, espalhando a fé pela quatro partidas do Mundo. As lições eram claras e muito objectivas num aspecto: os infiéis que não aceitassem a fé, transportada nas naus, eram combatidos e mortos como cães ou queimados vivos para que deles não restasse nada, nem sequer a alma, quando ousaram pôr em causa os livros sagrados.
Esse regresso às origens e às mensagens que me passaram na infância lembra-me sempre dois quadros de extrema similitude.
Um é o do esquecimento dessa história tão recente na incompreensão da manipulação da fé pelos regimes islâmicos. O fanatismo de tais regimes não tem nada de qualitativamente diferente do que influenciou muitos do grandes feitos pátrios, que nos ensinaram a admirar.
Outro tem a ver com o manto diáfano que cobre a justiça (que doravante sempre escreverei com letra minúscula, porque também é como minúscula que escrevo deus) e com o repisado slogan de que não podemos nem a devemos desacreditar.
Não é minha intenção desacreditar a dita, como não desacreditarei a senhora de Fátima ou a santa da Ladeira do Pinheiro.
Tenho o maior respeito por todas e por todos os seus devotos. Mas ninguém me pode pedir para acreditar em qualquer delas e muito menos na justiça porque com ela convivo e por ela me sinto enganado todos os dias.
Pensei, num dado momento, que deveria escrever um livro intitulado «Não acreditem na Justiça», com letra maiúscula e tudo, panfletário, subversivo. Desisti por duas razões: porque seria, de imediato, acossado pelos crentes e porque talvez me levassem mesmo aos tribunais da mesma, onde ela se vingaria em toda a sua dimensão.
Para que não haja confusões, faço questão de distinguir entre a Justiça com letra maiúscula e a justiça com letra minúscula.
A primeira continuo a amá-la como ideia e ideal eterno, tão bem configurado na trilogia de Ulpiano que define o Direito como «honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere».
Fixo-me no opúsculo de Rudolf von Ihering intitulado «Luta pelo Direito» publicado em Gottingen em 1891: «O fim do direito é a paz; o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sob a ameaça da injustiça - e isso perdurará enquanto o mundo for mundo – ele não poderá prescindir da luta».
Recordo com saudade as lições de Direito Romano do Padre Sebastião Cruz na Faculdade de Direito de Coimbra. Muitos conceitos e alguns erros foram para mim de grande utilidade ao longo mais de quase três décadas de advocacia.
Um dos erros mais chocantes reside numa citação frequente que O Padre Sebastião fazia do romanista espanhol Álvaro Dors e que dizia o seguinte: «Justitia es lo que hacen los jueces».
Não tenho nada contra os juízes, em cuja classe conto com muitos amigos e pessoas que sinceramente me estimam. Todos os dias recebo decisões que considero justas ou, pelo menos toleráveis. Naturalmente não tenho que as aplaudir nem que dar os parabéns a quem as proferiu.
Mas recebo também, com muita frequência, decisões imperfeitas e, por isso, necessariamente iníquas. Elas são um elemento importante do que considero a falência da justiça; mas não são, nem de perto nem de longe, o principal elemento.
Não é possível a um juiz proferir decisões perfeitas com o actual sistema processual e com dois ou três mil processos.
A falência do sistema começa por aí. E é preciso discuti-la, analisá-la em todos os seus elementos e encontrar uma alternativa.
Este sistema de justiça não serve a ninguém – muito menos à Justiça com letra grande – e é preciso encontrar-lhe alternativas, discutindo com objectividade e clareza os problemas concretos em vez de inventar continuas fugas para a frente, que não levarão a nada.
O que me proponho fazer nos meus próximos escritos são reflexões sobre questões e situações concretas e objectivas que considero exemplares dos males que afectam o sistema e o tornam irrecuperável.
Imaginam os meus leitores a amargura dos meus clientes quando lhes digo que não acredito na justiça que temos e que acredito ainda muito menos nessa justiça de pé descalço que se vai implementando no País, como meio alternativo.
Hoje, recorrer aos tribunais – seja no plano cível, seja no plano criminal – importa riscos terríveis.
Importa o risco de perder a razão quando, inequivocamente, se tem razão, porque é cada vez maior a incerteza das decisões.
Digo isto com a amargura de quem tem muitas vezes a vontade de queimar os livros de mestres tão brilhantes como Cunha Gonçalves, Dias Ferreira, Manuel de Andrade ou Mota Pinto, Ferrer Correia ou Isabel de Magalhães Colaço, Eduardo Correia ou Jorge Figueiredo Dias. Só não o faço porque me são precisos para uma actividade que antes me enfurecia e hoje me faz rir a bandeiras despregadas: a do confronto de conceitos que tínhamos por estabilizados com soluções que mostram pelo menos uma grande ignorância desses autores ou doutros que lhes contestaram as ideias, para entrarem no campo de um construtivismo sem bases teóricas, eventualmente forçado pela pressa ou pelo menor cuidado.
Dramático é o facto de as más decisões contaminarem o ambiente, atento esse vicio velho de recorrer ao argumento da autoridade dos outros tribunais, hoje facilitado com o copy-paste que a informática nos deu de bandeja.
Voltando à amargura dos tais clientes, o que lhes passei a dizer – eu que fui um viciado litigante – é que é preciso prevenir, fazer contratos perfeitos, evitar todos os focos geradores de litígios.
No que se refere à área criminal, aconselho-os a escolherem com todo o cuidado as companhias, porque, mesmo assim, correm o risco de se verem envolvidos numa embrulhada de que provavelmente nunca sairão.
Não sou um criminalista porque decidi, em 1982, afastar-me desse tipo de casuística, ciente de que morreria de enfarto num tribunal, perante as barbaridades que ofendem tudo o que aprendi na minha velha faculdade. Acompanho, porém, o desenvolvimento do direito criminal e não recuso, em nenhuma circunstância, a defesa de um amigo ou de uma pessoa por quem tenha especial consideração.
Considero a realidade do direito criminal que se pratica no nosso País absolutamente chocante e prometo escrever sobre isso, porque me parece que os portugueses não têm a mínima noção do grau de degradação a que chegaram as instituições.

1 comentário:

Anónimo disse...

Meu caro Miguel, é verdade que temos falado pouco, ultimamente, mas é uma enorme satisfação ver-te à escrita ! Quanto a esta matéria, comentários para quê !? Um grande abraço do Mário Cardoso