02 junho 2006

Há um ano, pela hora em que escrevo, estava com Jorgen Mortensen e sua esposa Ana, comemorando o seu 70º aniversário.
Jantamos num restaurante perto de S. Pedro de Muel e prolongamos a conversa até tarde.
Falamos, sobretudo, sobre a justiça portuguesa, de que Jorgen Mortensen foi, talvez, a maior vítima que conheci até hoje.
Morreu há um mês e pouco, como eu previ naquela noite.
Jorgen Mortensen foi um dos personagens mais notáveis que conheci na minha vida.
Comprou ao Estado a velha Fábrica Irmãos Stephens, na Marinha Grande, revolucionando a indústria do vidro e introduzindo em Portugal o conceito de cristal sem chumbo. Excelente designer, ganhou reputação em todo o Mundo, vendendo vidro para os estabelecimentos mais sofisticados da América e da Europa.
A fábrica cresceu, pagando o empresário os melhores salários da Marinha Grande e entregando pontualmente ao Estado os impostos que eram devidos e à Segurança Social.
Com encomendas que não conseguia produzir, lançou-se na instalação de mais dois fornos, produzidos por uma das mais reputadas empresas da especialidade. Só que os fornos nunca funcionaram.
Um terceiro forno foi instalado por outra empresa e também não funcionou, forçando a Jorgen Mortensen Lda ao esgotamento de todos os seus recursos.
Até que um dia, quase por milagre, alguém tocou com uma peça na boca e sentiu sabor a sal.
Estava descoberto o segredo: a fábrica havia sido sabotada e estavam ali as provas disso, logo analisadas pelo laboratório da empresa.
Mortensen apresentou queixa na Polícia Judiciária, que não veio.
Apresentou uma queixa ao Ministro da Justiça, António Costa, que nada fez, para além de participar dele próprio à referida polícia, que contra ele abriu um processo criminal por ofensa à dignidade das instituições portuguesas, porque na carta dirigida ao ministro, Mortensen referia o Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano em que Portugal figurava como o país mais corrupto da Europa.
Defendi-o nesse processo, em que acabou por ser absolvido.
E procurei, sem nunca o ter conseguido, que as investigações sobre a sabotagem fossem realizadas. Não tive nenhum sucesso.
Gerara-se contra aquele homem, que sempre pagou os seus impostos e as contribuições devidas à Segurança Social, um complot que envolveu tudo o que era poder em Portugal.
Quando se descobriu a sabotagem, Jorgen Mortensen tinha encomendas prontas a sair da fábrica, cujos proveitos seriam suficientes para solver todas as responsabilidades.
Como a sabotagem não resultou, porque foi descoberta, o Sindicato dos Vidreiros convocou uma greve que conduziu à paralisação da empresa e «forças ocultas» despejaram camiões de entulhos na entradas da fábrica, impedindo que as mercadorias saíssem para o Harrods de Londres e para clientes americanos que as aguardavam.
Era então Ministro da Administração Interna o Dr. Nuno Severiano Teixeira sendo governador civil de Leiria o Dr. Carlos André.
Estes personagens, a quem cumpria garantir a ordem pública e a livre circulação de mercadorias nada fizeram para obstar essa selvajaria, intolerável num país da União Europeia.
Carlos André, depois de ter terminado o mandato de governador civil, haveria de ser presidente da Vitrocristal ACE, um agrupamento complementar de empresas de onde as empresas vidreiras foram «expulsas», para as suas posições serem tomadas pela respectiva associação, pelo IAPMEI e pelo ICEP.
Esta entidade sorveu milhões de subsídios públicos e está tecnicamente falida há muito tempo, a ver pelos seus balanços.
Mas mais do que isso, que esse esbanjar de dinheiros públicos, conseguiu arruinar a indústria do vidro da Marinha Grande, por via da destruição da concorrência entre as empresas.
Jorgen Mortensen era um homem de uma força colossal.
Alto, grandão, loiro como todos os dinamarqueses, era, acima de tudo, um homem de ideais e de princípios.
E foi essa a sua desgraça.
Abandonou a associação das empresas vidreiras no dia em que apresentou uma proposta que proibia os associados de piratear os modelos dos demais.
Ainda conseguimos levar a juízo uma acusação de contrafacção em que apresentamos peças rigorosamente iguais às suas. Mas era evidente, desde o princípio, que nunca obteríamos uma condenação nem nesse caso nem em qualquer outro em que os seus direitos houvessem sido violados.
Comecei a dar-lhe assistência ainda os trabalhadores estavam em greve.
Convenci-o a ele e à Ana a desistir de todas as queixas contra os trabalhadores que os haviam agredido.
Conseguimos uma trégua, que permitiu relançar a empresa, que estava exausta.
Negociou-se com os trabalhadores que eles recorreriam ao Fundo de Garantia Salarial até repor a tesouraria e que à medida que se fosse esgotando a garantia do fundo, haveria a empresa de gerar receitas para pagar os salários. E tudo foi meticulosamente cumprido.
Mas havia, claramente, um plano para destruir aquela empresa, que antes da greve, ao contrário de outras, não devia um cêntimo ao Estado e à Segurança Social.
Descobrimo-lo quando, dias antes da assembleia de credores no processo de recuperação de empresa que introduzimos em juízo, nos vieram dizer que a empresa seria «salva» mas sem os Mortensen, entregando-a a terceiros. Foi nesse sentido o projecto do gestor judicial, um homem que, entretanto, haveria de ser preso, envolvido no chamado escândalo das falências do Norte do país.
Em menos de duas semanas construímos um plano alternativo, com uma equipa dirigida pelo Prof. Fernando de Carvalho, da Faculdade de Economia de Coimbra.
De acordo com esse plano todos os credores seriam integralmente pagos, pedindo-se-lhes apenas um moratória. Os Mortensens envolviam nele todo o capital próprio e das suas empresas, nomeadamente os cobiçados terrenos da fábrica e uma mansão no norte do país.
Surpreendentemente – e ao contrário do que fez em inúmeras outras empresas – a Segurança Social opôs-se ao projecto, que foi aprovado pela maioria esmagadora dos credores.
O sindicato dos vidreiros absteve-se, como se estivesse interessado em que a empresa fosse mesmo lançada para o charco.
Na viva discussão que se travou na assembleia de credores, com Jorgen Mortensen olhando todos olhos nos olhos, tive a oportunidade de dizer e de demonstrar com números que estávamos a assistir a um terrível acto de gestão danosa, porquanto, como era previsível, se a Segurança Social se opusesse não receberia um cêntimo e perderia milhões, para além de lançar no desemprego mais de cem operários qualificadíssimos.
Depois disso foi um saga.
Era muito difícil manter a empresa em funcionamento quando o Estado e a Segurança Social estavam apostados, por obscuras razões, em a liquidar.
Havia encomendas, havia pedidos de todo o Mundo e Mortensen vendia os vidros mais caros da Marinha Grande.
Dramático é que não tinha crédito.
Arranjaram-se, entre amigos do casal e clientes, uns milhares de contos que permitiram capitalizar uma outra empresa, que passou a comprar toda a produção e a comercializar os vidros da Jorgen Mortensen.
Havendo encomendas, mas não havendo dinheiro para a energia e as matérias-primas, montou-se um novo forno de menor dimensão e pediu-se ao tribunal que autorizasse a empresa a reduzir o pessoal, como única medida de gestão possível naquele quadro de crise.
A magistrada detentora do processo considerou que era preferível manter 60 postos de trabalho do que liquidá-los a todos. E autorizou…
A esse trabalhadores nunca faltou o salário no último dia do mês. Os impostos e os descontos para a Segurança Social foram rigorosamente depositados.
Mas a empresa não podia sobreviver porque a Segurança Social se lhe opunha, contestando a moratória aprovada pela maioria dos credores e porque o sindicato preferia que todos fossem para o desemprego do que houvesse metade dos trabalhadores empregados.
A justiça da Relação de Coimbra, insensível a estes argumentos e à realidade da vida, deu razão a uma e a outro e inviabilizou o projecto de recuperação aprovado pela maioria dos credores, obrigando a juiz da primeira instância a alterar a sentença homologatória em termos de se exigir imediatamente o pagamento da totalidade dos fundos avançados pelo Fundo de Garantia Salarial e de reconhecer aos trabalhadores inactivos – alguns dos quais já estavam a trabalhar noutras empresas – o direito aos salários pelo tempo em que não trabalharam.
Quando anunciei estas decisões a Mortensen ele chorou como uma criança, antes de pôr um ar sereno e de me perguntar: «And now; what’s legal?...»
Na Marinha Grande há inúmeras empresas que não pagam os impostos e não entregam os descontos Segurança Social, sem que nada lhes aconteça. Mas este homem era incapaz de fazer isso não porque tivesse medo de ir preso (e seguramente que iria) mas por uma questão de civismo.
Disse-lhe que não poderia discriminar entre os trabalhadores que trabalhavam e os que não trabalhavam e que, para não ser incriminado, teria que pagar primeiro aos que não trabalhavam do que aqueles que trabalhavam.
Perante a constatação deste absurdo decidimos que só havia um caminho a seguir: pagar os salários até ao último cêntimo aos trabalhadores que trabalhavam e apresentar a empresa à falência.
E foi isso que se fez, quando a empresa tinha uma fabulosa carteira de encomendas, que não conseguia satisfazer e Mortensen dizia, coma convicção de um mestre esta frase singular que não me sai da memória: «acaba de fechar a melhor fábrica de vidros do Mundo e eu não posso fazer outra porque estes são os melhores vidreiros do Mundo.»
Quando, há um ano, comemoramos o seu 70º aniversário, Mortensen alimentava com as suas encomendas e os seus modelos outras fábricas da Marinha Grande, mas alimentava ainda a ideia de que alguém pudesse aceitar o desafio de pôr aquela fábrica a funcionar, que ele lhe garantiria a produção.
Sofria, sobretudo, com a ideia, cada vez mais sedimentada de que tudo aquilo era um maquiavélico processo para destruir o que fora a Fábrica Irmãos Stephens e transformar aquele espaço num apetecível projecto de especulação imobiliária.
Para o impedir e para se defender, acreditando que a Europa o podia salvar, ainda tentou denunciar (e denunciou) o enterramento de toneladas de escórias tóxicas numa área financiada pelo POLIS. Mandou recolher amostras, pediu análises no Canadá e apresentou documentos demonstrativos de que as escórias estavam ali, em montanhas de chumbo e cádmium, sendo sepultadas à beira de um curso de água, contra todas as regras.
Mas também aqui ninguém o ouviu, nem sequer as associações de ecologistas, como se estas próprias fizessem parte do que chamava «The corruption galaxy».
Morta a esperança de salvar aquela empresa, eu próprio me senti um derrotado e por isso pedi a Jorgen Mortensen que me substituísse e me evitasse mais deslocações à Marinha Grande, onde passei a ter dificuldade em encarar aquelas dezenas de vidreiros em que incuti esperança nos momentos de maior desespero.
Falei com ele depois do Ano Novo, tentando convencê-lo a montar uma fábrica na China e a comercializar as suas marcas a partir do Oriente.
Disse-me que não, alegando que um vidreiro demora vinte anos a formar e que já não tinha idade para isso, pois só obteria a mesma qualidade quando tivesse 90 anos. E repetiu-me: «a Marinha Grande tem os melhores vidreiros do Mundo. Já não são os meus, mas muitos aprenderam com os meus…»
Ana andava feliz, correndo de fábrica em fábrica para satisfazer as encomendas e o jovem Jorgen deixara voluntariamente os estudos para ajudar a família neste momento difícil.
Declarada a insolvência da empresa, ficara inequivocamente demonstrado que aquela família envolver todo o seu património no projecto de recuperação e reanimação da valha fábrica dos Stephens,
Julgava Mortensen que, depois de ter perdido quase tudo, mas feito a vontade à Segurança Social, que tudo apostou para o encerramento da empresa, viveria em paz.
Numa manhã de primavera apareceu-lhe na caixa de correio uma carta convocando-o para um processo criminal, por dívidas à Segurança Social.
É o que se chama uma carta assassina. Ana ainda correu com ele para Madrid, mas Jorgen não resistiu à cirurgia cardio-vascular a que foi sujeito.
Reduzido a cinzas, ficou por expressa vontade em Espanha, satisfazendo os desejos dos que, há vários anos, pediam o seu afastamento do País.
O antigo governador civil de Leiria tem todas as razões para estar feliz.
Os juízes e os demais magistrados para quem as queixas de Mortensen eram um incómodo, ao ponto de não andarem os processos, também devem ter respirado de alívio.
Eu fiquei triste porque o meu amigo Jorgen, uma das personalidades mais notáveis que conheci, se foi embora sem se despedir de mim.
Fazia ontem 71 anos.

7 comentários:

Anónimo disse...

Caro Dr Miguel Reis,
Já o conhecia da Newsletter (porque não Circular?) que aproveito para agradecer.
Quero dar-lhe os meus parabéns pela coragem da denúncia de um sistema de justiça falhado e corrupto.
Mesmo na África onde moro a prisão preventiva não vai além de 15 dias após o que o habeas corpus toma precedência. Que país é este que dá pelo nome de Portugal?
Li os seus outros escritos. São situações chocantes.
Ë preciso gente como você para desmascarar o sistema na esperança de que mais cêdo ou mais tarde se imponha a primazia do direito sobre o da 'justiça'.

J.F. Carvalho
Nairobi

Anónimo disse...

ola Miguel Reis,

Muito obrigado de ter escrito a verdade eu sou Tanja Mortensen a filha do Jorgen Mortensen o melhor pai do mundo na havia pessoa mais boa que ele eu sinto muito falta dele.
Muito obrigado
Tanja Mortensen
Germany

Anónimo disse...

Dr. Miguel Reis,

Após tanto tempo (não o fiz antes, talvez por falta de condições sob as circunstâncias que me rodeavam), decidi postar um pequeno comentário sobre a verdade que o Dr. aqui escreveu! Espero que a justiça que o Dr. fala seja feita, mesmo tendo a noção do país onde estamos, e saber que quem mais sacaneia é quem sobrevive! O meu pai tinha uma empresa com 300 trabalhadores, que com as encomendas e muito trabalho árduo ultrapassava os custos que caíam todos os meses. - Até aqui uma empresa perfeitamente normal! O que aconteceu depois? Após todos os problemas intencionados a que fomos sujeitos, (não vale a pena mencionar, visto que o Dr. Miguel Reis os explica acima), resolveram fechar uma empresa saudável e deixar aberta uma autêntica calúnia e vergonha Marinhense chamada "MGALSS". Sim, porque esses senhores (se assim lhe querem chamar), receberam 36Milhões de Euros que sumiram em apenas cinco anos! Para onde foi esse dinheiro? - Uma bela pergunta que eu e todos os interessados gostávamos de obter a resposta! Infelizmente, o dinheiro que devia ser sido usado para divulgar a indústria vidreira, a Marinha Grande, e manter viva a alma do vidro, foi em maior parte usado para pôr em prática o sonho de ganhar um EUROMILHOES! E agora pergunto assim, para onde foi esse Euro milhões? Lamentavelmente foram para os usos habituais que lhe dão: carro, apartamento junto há praia e viagens de “negócios” há neve e estâncias balneares! Espero que este bluff seja desmascarado e que a cada um lhe seja dado o mérito merecido. Mesmo assim devo dizer ao Dr. Miguel que acho muito difícil isso acontecer. Porque se nós, os non-bluff-man´s e todos os que não entramos em jogos e esquemas para arrumar mais algum ao bolso, se roubasse-mos 500€, éramos postos a ver o sol aos quadrados. Mas Dr., com eles foram 36Milhões, por isso em Portugal já é considerado desvio! Mais uma vez, até se fazer justiça eles vão continuar a gozar o fruto desses fantásticos desvios! Obrigado por toda a sua coragem e verdades escritas no seu post. Devo-lhe um grande obrigado por isso!
Melhores cumprimentos,
Jorgen Rodrigues Mortensen, que tinha um pai ao qual se podia chamar um Empresário.

Anónimo disse...

Boa tarde

Em primeiro lugar, tomei conhecimento so texto acima escrito e por essa mesma razão, gostaria de informar que no texto acima escrito, foi usado o nome sem qualquer tipo de autorização.
Lamento qualquer tipo de questão que se possa por em causa devido a este acontecimento!
- Agradecia deste modo que fosse posto uma medida de segurança para que tal não voltasse a suceder. Mais uma vez,lamento o sucedido!

Obrigado pela compreenção
Jorgen.R.Mortensen

Anónimo disse...

Agora sim, por minha mão,e não por mão de terceiros, devo dizer que o Sr. escreveu não só uma verdade como uma honra para nós. Apenas com 19 anos, eu sei ver e dar o valor as pessoas que sempre estiveram do nosso lado quando nós precisamos!

Desejo tudo de bom para o Dr. Miguel Reis.

Abraço.
Jorgen.R.Mortensen

Anónimo disse...

Vivo em Portugal a dez anos e cada dia que passa fico chocada com problemas que se passam. Este caso é mais um que a culpa morre solteira.
Trabalho e não param de surgir casos destes todos os dias. Só não percebo se há indicios que corrupção porque é que a justiça Portuguesa não toma qualquer iniciativa em resolver o caso? Deviam existir mais´pessoas com coragem para resolver estas casos de corrupção.
Alin dias

Anónimo disse...

Sou marinhense, actualmente a viver em Lisboa, mas sempre preocupado e a tentar informar-me àcerca do que peça Capital do Vidro se vai passando. Conheço bem a loja Jorgen Mortensen, que todos os anos visito e onde faço parte das minhas compras de Natal. Ao ler o texto acima escrito pelo Dr. Miguel Reis, passei também a perceber melhor um pouco da história de vida do Sr. Jorgen Mortensen e da promiscuidade que continua a existir em Portugal e em particular na Marinha Grande no que à industria vidreira respeita. Desejo que a Jorgen Mortensen - antiga Fábrica Escola Irmãos Stephens (que nunca devia ter sido fechada pelo actual Presidente da República) consiga ultrapassar todas as dificuldades que encontrou e certamente continua a encontar e continue a fazer o melhor vidro do mundo. Na Marinha Grande. Já lá fui às compras para este Natal.
Um abraço e boa sorte Jorgen Mortensen