31 janeiro 2009

O massacre de Sócrates (IV)

Havia um advogado em Lisboa que, há alguns anos, afirmava, de forma séria aos seus clientes que tinha grandes hipóteses de pôr termo à prisão preventiva dos mesmos por via do suborno dos juizes.
Explicava ele que os conhecia a todos muito bem e que todos gostavam de dinheiro, divergindo apenas na flexibilidade com que encaravam os processos. Para o efeito, pedia 10.000 contos aos presos, dizendo que 5.000 eram para o juiz e os outros 5.000 para ele próprio, que corria o risco inerente à abordagem do assunto com o magistrado. E devolvia os 5.000 destinados ao juiz, quando a prisão preventiva não era suspensa e o preso era levado, nessa condição, a julgamento.
Nunca ninguém saberá ser era verdade o que afirmava o advogado, se nalgum caso ele corrompeu efectivamente algum juiz, ou se, pura e simplesmente tudo não passava de um golpe que permitia ao causídico ganhar 10.000 contos naqueles casos em que, mercê da sua acção processual, conseguia pôr termo à prisão.
A verdade, porém, é que os clientes libertados acreditavam que o sucesso se devia à corrupção dos juizes, que pode não ter acontecido.
O mesmo tipo de prática é conhecido relativamente a um sem número de pessoas que invoca influências para resolver processos administrativos, a troco de dinheiro que diz ser para o presidente, o vereador ou o funcionário administrativo. Isso é muito comum e nunca se sabe qual o destino do dinheiro.
Tenho para mim que, na maior parte das situações, os intermediadores ficam com a massa para eles próprios, não a distribuindo por ninguém.
Pode ter ocorrido uma situação dessas no caso Free Port, não se podendo excluir a hipótese de os intermediários que negociaram o licenciamento terem pedido elevados montantes ao investidor, alegando a necessidade de corromper os membros da administração e do governo, com a intenção de enriquecerem eles próprios.
Só é possivel descobrir a verdade, seguindo o circuito do dinheiro e questionando quem o movimentou.
Se os fundos foram entregues a A e A os colocou na conta B terá ele que justificar porque o fez. E se os fundos sairam da conta B, indispensável se torna saber para quem sairam, devendo ser perseguidos até ao seu destino.
Isto não é assim tão dificil e eu estou convicto de que neste momento alguém já sabe de tudo. Os eficazes serviços secretos ingleses - o MI5 - de certeza que o sabem.
José Sócrates pode estar inocente, mas será muito difícil resistir politicamente ao autêntico massacre a que vem sendo sujeito se não tomar iniciativas que permitam à opinião pública concluir que ele é uma vítima.
É importante perceber que estão em curso dois processos, de natureza diferente, que se complementam mas cujos objectivos não são coincidentes.
Temos, de um lado, um processo jurídico (que afinal são dois: um em Portugal e outro em Inglaterra), sujeito a um ritual próprio e a formalidades específicas. Esse processo é lento e é secreto relativamente às pessoas que nele não são arguidos.
Temos, de outro lado, um processo político que não tem regras e que tem o ritmo próprio que lhe é imposto por quem controla a comunicação.
No quadro do primeiro vigora a regra da presunção de inocência, não podendo considerar-se ninguém culpado até ao trânsito em julgado de uma sentença condenatória.
No quadro do segundo, por mais que se afirme o contrário, não há presunções de inocência. A mulher de César não tem apenas que ser honesta; tem também que parecê-lo. E o simples facto de sobre ela se lançar uma suspeita acaba-lhe com a mácula se ela não sair à praça em defesa da honra.
Dir-se-à que, como diziam hoje as televisões, José Sócrates já o fez cinco vezes e isso é verdade. Só que não o fez em termos eficazes, nem usando os meios próprios dos processos políticos; bem pelo contrário, usou a lógica e os argumentos dos processos jurídicos, que, no plano do político funcionam de modo inverso.
Na pequena política do nosso dia a dia, todos já nos apercebemos que não negociamos com A ou com B, nunca condenados pela prática de qualquer crime, apenas porque a vox populi diz que eles são uns vigaristas.
Na vida comercial funcionam, aliás, sistemas de informação, absolutamente desregulados, que vendem relatórios - sempre qualificados como confidenciais - que tanto podem afirmar o crédito de uma pessoa de um nível superior ao que ela merece, como podem fazer dela um juizo absolutamente demolidor, que a liquida comercialmente, com base em meras «informações da praça».
É verdade que quem é arguido num processo judicial beneficia do princípio da presunção de inocência. Mas também é verdade que o princípio redunda, na prática, numa treta. A simples constituição de arguido, por via da afirmação de indícios da prática de um qualquer crime, liquida qualquer um em termos sociais. E a verdade é que, mesmo que seja absolvido, nunca mais conseguirá conseguirá limpar a mácula.
Isto é ainda mais sensível e mais perverso no plano político, por variadas razões.
Os políticos não gozam de boa fama porque a vida política é pouco transparente e alimenta processos de intriga sistémicos, que são da sua própria natureza. Ao facto não é alheia a constatação de que uma boa parte dos agentes políticos mostram sinais exteriores de riqueza que não são compatíveis com os seus rendimentos.
A tradicional «cunha» foi substituida por sofisticados mecanismos de lobbying, consolidando-se na sociedade a ideia de que ninguém consegue fazer avançar qualquer procedimento administrativo com sucesso sem recorrer a meios ilegais.
O Estado apregoa a distribuição de milhões de euros de subsídios, mas criou-se a ideia generalizada de que só consegue aceder a eles quem caminhar pelos «circuitos próprios».
De tempos a tempos, os jornais fazem-se eco, em termos mais ou menos heroicos, da abertura de processos judiciais, por suspeita de corrupção. Mas quando os mesmos chegam ao fim, fica a ideia de que a montanha pariu um rato e a suspeita de que algumas denúncias de corrupção não foram mais do que manobras políticas, destinadas a afastar os protagonistas do terreiro que ocupavam.
Há uma realidade insofismável que pode sintetizar-se nos seguintes termos: a mera suspeita da prática de um crime, ainda que não imputada pela justiça a pessoas concretas, gera mecanismos de desconfiança relativamente às pessoas para quem a suspeita aponta, em termos que podem ser absolutamente demolidores.
Esses mecanismos são ampliados na comunicação social, em termos que merecem alguns comentários específicos, porque também ela tem regras e canais próprios, que não podem desconsiderar-se.
A comunicação social goza, em países de imprensa livre como o nosso, de um conjunto e prerrogativas que, transformando-a em garante do direito dos cidadãos à informação, lhe conferem, num certo sentido, um papel de controlo do poder político.
Sem prejuizo da orientação própria de cada um dos media, há uma matriz que a todos se impõe e que se afirma na obrigação de não sonegar informação. Violar tal obrigação colocaria o próprio meio numa posição de suspeito, com os inerentes riscos de perda de audiência e de liquidação pelo mercado.
Esta realidade confere um poder especialíssimo a quem controlar as fontes de informação e estiver em condições de administrar os fluxos informativos. É nesse sentido que se afirma que quem tem informação tem poder; e poder sobre os próprios media.
Neste caso, a que chamamos «O Massacre de Sócrates», não há nenhuma dúvida de que estamos perante um plano de comunicação cuidadosamente gizado, visando a destruição do primeiro ministro.
Alguém - que não se sabe quem é - está a sortar informação quente no sistema de comunicação e a lançar pistas para investigações dirigidas, suscitando dúvidas sistemáticas sobre a postura política de José Sócrates.
Tudo começou com um facto, concreto e objectivo, que redunda numa suspeita de corrupção no licenciamento do empreendimento da Free Port em Alcochete.
O dossier que foi «solto» na comunicação social foi meticulosamente preparado, de forma a mostrar que estamos perante um conjunto de procedimentos pouco ortodoxo, com um diagrama de alterações chocante, numa zona sensível.
A calendarização da gestão de informação foi feita de forma a catalizar a geração de contradições, de forma a que o processo de comunicação seja autosustentável e duradouro.
A primeira fase do processo culminou com a entrega por alguém aos jornalistas da carta rogatória enviada pelas autoridades inglesas ao Ministério Público de Portugal, documento que tem um efeito absolutamente demolidor, por relação a um comunicado do Procurador Geral da República, que afirma que não há qualquer suspeita relativamente a José Sócrates.
A diferença dos conteúdo do conceito de suspeito na linguagem jurídica e na linguagem política induz na opinião pública (em que domina o político) a ideia de que o Procurador está a proteger o primeiro ministro, ideia essa que sai reforçada com a própria defesa de Sócrates, no passo em que considera o Procurador como a única autoridade com competência para se pronunciar sobre o caso.
Os processos mediáticos evoluem a uma velocidade vertiginosa. Passados quatro dias, as questões que se colocam já nada têm a ver com a regularidade ou a irregularidade dos procedimentos mas com a questão de saber onde foi parar o dinheiro saido da Free Port.
Será que foi recebido por José Sócrates ou por alguém da sua confiança?
Independentemente das jogadas que possam estar por detrás deste processo comunicacional, essa é que é a questão essencial. E ou José Sócrates consegue encontrar meio de demonstrar, muito rapidamente e de forma inequívoca, que nada recebeu ou será liquidado por este processo comunicacional.
A defesa que tem vindo a fazer é absolutamente desastrosa e, em vez de lhe melhorar a imagem, ainda a corroi mais. Sócrates parece não ter percebido que a questão essencial é política e não jurídica; e que os tempos da justiça e da política são diferentes e até contraditórios.
O poder está nas mãos de quem tem a informação e - neste como em todos os casos semelhantes - é muito difícil a alguém defender-se de uma manipulação perversa da mesma.
O paradoxo está no facto de Sócrates poder ser atacado com base em factos constantes de processos judiciais mas não poder aceder á totalidade desses factos, contraditando tudo o que lhe seja desfavorável.
Nesse sentido, tudo o que disser é como que dar um salto no vazio.
Essa é a grande perversidade de um modelo de processo assente numa lógica inquisitória, em que é inexistente a igualdade de armas entre os titulares da acção penal e os arguidos ou suspeitos.
Essa é a grande perversidade de um sistema de segredo desleal, em que os visados pelas investigações ficam atados de pés e mãos e em que a imprensa pode ser manipulada, por via da gestão da informação a disponibilizar aos media.
Parece-me que, em situações como esta, a sociedade teria toda a vantagem em que os visados e a própria imprensa pudessem ter completo acesso aos processos, podendo uns defender-se de forma clara relativamente às suspeitas sobre eles lançadas e os jornalistas questionar tudo o que houver que questionar para que possa ser sindicada a fiabilidade política dos envolvidos.

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