LIBERDADE DE
EXPRESSÃO E JUSTIÇA
Miguel Reis[i]
Os jornais lisboetas do dia 17 de
Outubro de 1996 deram honras de primeira página à advertência feita pelo juiz
Cid Geraldo a Pedro Caldeira, em termos
que, muito justamente as merecem.
O “Diário de Noticias” escreveu em
titulo que o “juiz ameaça Pedro Caldeira”,
remetendo-se o “Público ”, também em
título, para uma citação do magistrado:”Sr. Pedro Caldeira, não brinque com a
justiça”.
Segundo decorre da leitura da
notícia, a “brincadeira” seria constituida
pela profusão de entrevistas e declarações do antigo corretor à comunicação
social e que poderiam redundar, nalguns casos, em “eventuais e sibilinas tentativas de alteração do sentido normal de
admninistração da justiça”.
O que vem nos jornais a propósito
deste caso é muito preocupante a vários
titulos.
1. Não me parece próprio que um juiz
de hoje - da sociedade de informação - diga a um arguido que ele poderá ver substituida a liberdade pela prisão
preventiva se continuar a falar aos meios de comunicação social. Em minha
modesta opinião uma tal postura é absolutamente destituida de fundamento legal
e ofensiva de um direito fundamental que nenhum juiz tem o direito nem o poder
de limitar - a liberdade de expressão.
O processo em causa não está em segredo
de justiça nem Pedro Caldeira está obrigado a ele. E é no quadro do segredo de
justiça que a nossa lei processual estabelece a única limitação admissível
(todavia temporária e com sentido absolutamente instrumental) à liberdade de
expressão.
2. Dispõe a Constituição que os
tribunais realizam a Justiça em nome do Povo. Trata-se de uma declaração
indispensável - porque bondosa e profundíssima de sentido - que não podemos deixar de citar para apreciar
esta questão.
As nossas sociedades democráticas
não conseguiram ainda resolver o problema da inexistência de representatividade
democrática dos tribunais, naquele sentido genético com que, normalmente, se
fala de representatividade em tal plano. A pretexto da falácia da independência
dos magistrados, elas mantêm uma lógica sacerdotal para
as Magistraturas que afronta na origem a
lógica democrática.
Para muitos, não será uma coisa
muito importante, sobretudo quando o tradicional conceito de democracia se vai
ofuscando com a multiplicação de centros de poder sem raiz democrática, de que
releva, por ser o mais chocante, o da Comissão Europeia. Vivemos, aliás, todos conformados com isso, porque todos
sentimos que não é fácil substituir o actual sistema de magistrados-funcionários
por um sistema de juizes e procuradores legitimados pelo voto que pudessem, com
toda a propriedade, administrar a Justiça “em nome do Povo”.
É precisamente esta consciência da
inexistência de legitimidade democrática dos tribunais que confere um
especialíssimo sentido àquela declaração quase bíblica. É que, não sendo
eleitos por ninguém nem estando sujeitos ao controlo de nenhum órgão
democrático, os juizes estão porém obrigados a administrar a Justiça como se o
tivessem sido.
3. É isso que torna especialmente
chocante a mensagem do juiz Cid Geraldo.
Ao dizer que “a Justiça é lenta mas funciona”, juntando-lhe de imediato o aviso
de que “não brinque com a Justiça”
esse distinto Magistrado falou da Justiça como se ela existisse autonomamente e
como se fosse uma justiça intocável e austera, afastada do Mundo e dos Homens;
como se a Justiça continuasse a ser, na expressão de Álvaro Dors, “lo que hacem los jueces”. Hoje toda a gente sabe - mesmo as
criancinhas - que a Justiça não existe. E sabemo-lo sobretudo todos nós os
juristas, dos advogados aos magistrados, passando pelos consultores que
desistiram de litigar nesta selva.
A mediatização do caso Pedro
Caldeira - como a do caso O.J. Simpson - é extremamente positiva. Eu diria
mais: a mediatização da actividade judiciária que coloque o Homem no centro do
processo - processo público - é sempre positiva e o grande drama reside
precisamente no facto de, nas mais das vezes, não ser o Homem mas serem os
aparelhos policiais quem é colocado no centro da notícia.
Todos nós sabemos que é muito perigoso ser-se arguido em Portugal.
Os tribunais estão saturados, os juizes têm muito que fazer e é muito difícil
levar a investigação às últimas consequências. Quando os advogados procuram
aproveitar pequenas contradições para enveredarem por novas vias probatórias,
com vista a um melhor esclarecimento da verdade material, o que com frequência acontece é que os juizes se
impacientam, declaram que já estão esclarecidos e lhes retiram a palavra.
A liberdade de instar dos advogados
é muito limitada e continua a desenvolver-se com muitos punhos de rendas, face
a uma judicatura que, salvo algumas honrosas excepções que só a valorizam, se
enerva com muita facilidade, se irrita muitas vezes sem fundamento válido e,
sobretudo nas camadas mais jovens, tem uma grande dificuldade de relacionamento
que estriba numa exagerada prepotência.
Por mim, se ouso polemizar,
discutir, tentar fazer valer os meus argumentos com grandes senhores e grandes
senhoras que ainda se encontram nos
nossos tribunais, desisto completamente de o fazer quando por detrás de uma
beca encontro alguém muito nervoso com a
voz mal colocada.
Aqueles que andam pelos tribunais sabem que isto é um totobola, a
começar logo pelos juizes que lhes saem na rifa. Todos os que por cá andam há
anos sabem que casos idênticos, com o mesmo recorte, têm tratamentos
completamente diferentes se julgados por este ou aquele juiz, por este ou
aquele colectivo. Todos os que por cá andam há anos sabem que com determinados
juizes há maior liberdade de produção de prova do que com outros, cujo
principal objectivo parece ser - e isso porque o sentimos e o interiorizamos -
o de impedir a alteração de pre-juizos já elaborados.
4.
Sou frontalmente contra a violação da intimidade das pessoas e contra o
massacre mediático; mas sou pela mediatização da Justiça.
Não me parece correcto o que as
polícias fazem todos os dias, com
manifesta violação do segredo de justiça, fornecendo aos media notícias que, em muitos casos são falsas mas que, ao serem
consideradas como verdadeiras pela opinião pública permitem estabelecer uma
ideia positiva das instituições policiais.
Seria muito interessante fazer um
estudo comparativo das informações passadas pelas polícias aos media e dos resultados dos respectivos
julgamentos. O caso mais gritante que conheço neste plano é o de um continuo
dum banco que alegadamente era um superfalsificador, foi acusado de mais de cem
crimes de falsificação de titulos de crédito e acabou por ser absolvido de
tudo... com excepção de um crime de violação de segredo bancário, em que foi
condenado à pena máxima, apenas porque foram apreendidas algumas folhas das
listagens do banco, a forrar, em sua casa, uma gaiola de periquitos.
Estou pessoalmente convencido de que
há muitos inocentes condenados por pressão da comunicação social, ainda que
esta aja de boa fé. Eu próprio tenho a consciência de, nos meus tempos de
jornalista, ter redigido notícias que mais tarde vim a verificar serem falsas,
porque dei como boas informações que me foram facultadas pela polícia.
Assisti, entre o chocado e o
ofendido, à cobertura televisiva do julgamento do Padre Frederico, não podendo
deixar de manifestar a mais veemente repulsa perante um tal tipo de
mediatização. Ao invés, acompanhei, quase dia a dia, o julgamento do caso O.J.
Simpson e penso que ali está um bom caminho e um bom modelo de pressão positiva
dos media sobre os tribunais.
5. Se tivesse sido julgado em
Portugal, O.J. seria condenado, de certeza absoluta, e o julgamento não duraria
metade do tempo que durou. Se tivesse sido julgado na América sem a cobertura
televisiva que teve o seu julgamento, sê-lo-ia, outrossim, quase de certeza.
O.J. Simpson só não foi condenado
porque todo o povo americano assistiu ao desfiar na televisão de duas ou três
pequenissimas dúvidas, todavia em rota de colisão com a tese, demonstrada quase
ao absoluto, de que fora ele o assassino.
Aqueles jurados e aquele juiz
estiveram durante dias e dias pressionados pela opinião pública, que discutiu
exaustivamente o caso ao mais pequeno pormenor.
Aqueles jurados e aquele juiz sentiram-se seguramente pequeníssimos
perante a responsabilidade que tinham sobre as costas; mas hão-de ter-se
sentido, sem dúvida, efectivos representantes da grande nação americana.
Ora, isso só foi possivel graças à
mediatização do julgamento, que colocou aquele homem no centro do Mundo. Um
dos grandes dramas das nossas
sociedades, profundamente mediatizadas, está em que o direito de expressão e
informação é de muito dificil realização para a generalidade dos cidadãos. Essa
realidade dificulta enormemente a realização da Justiça, na medida em que
deveria ser ela própria uma actividade mediatizadora, como arte de equilibrio (ars boni et aequi) e de relação entre homens e valores.
O ideal seria que todos os arguidos pudessem
ter dos meios de comunicação social a atenção que tiveram O.J. Simpson e Pedro
Caldeira. Mas se esse ideal é irrealizável, não se invertam os valores e,
sobretudo, não se leve tão longe o desprezo pelos mediadores quando estes resolvam tranformar o caso deste ou daquele
cidadão num caso.
É do domínio público que a história
de Pedro Caldeira saltou para os jornais quando o processo ainda estava em
segredo de justiça e foi alimentada durante meses por informação com o mesmo
sentido do que viria a ter a acusação.
Digamos que a acusação - o seu teor, nalguns aspectos, ou pelo menos o
seu sentido - dominou durante muito largos meses o file Caldeira
no processo mediático.
Não ouvi ninguém dizer que esse
facto constituia uma forma de pressão sobre o tribunal e, por isso, acho que é
absolutamente chocante esta intimação ao silêncio feita pelo juiz Cid Geraldo.
É que se há alguma coisa que condiciona a opinião pública - et pour cause o tribunal - é o que
terceiros (maxime o Ministério Público )
disseram directa ou indirectamente, durante anos, do antigo corretor.
Parece-me absolutamente legítimo
que, no exercício do sagrado direito de expressão , ele tente compensar essa
onda negativa com depoimentos seus, com intervenções suas na comunicação
social. Mas mais do que legítimo, parece-me que é extremamente positivo
que Pedro Caldeira dê entrevistas, fale,
conte a sua história. É que quanto mais elementos ele fornecer à opinião
pública - e por isso também ao tribunal - mais longe há-de ir o apuramento da
verdade e mais perfeita há-de ser a decisão judicial que se adopte sobre o seu
caso.
A publicidade das audiências
constitui, quiçá, a maior garantia do respeito pelos direitos individuais e do
esforço pela realização da justiça. A televisão permite, felizmente, ampliar
essa virtude, desde que se assegure sem limitações - e sobretudo sem
preconceitos - a liberdade de expressão. E se necessidade de regulação houver
parece-me que se deve evitar, em todo o caso, o recurso à intervenção
judiciária. É que, nesse plano, a Justiça só tem a perder se os tribunais se
precipitarem num campo que, por natureza, não é o seu.
A ofensa das normas deontológicas só
deve ser apreciada pelos tribunais quando isso se tornar indispensável - de
permeio - para a aplicação do direito. No mais, é campo pré-jurídico, em que
nos parece que os juizes não devem envolver-se, mesmo quando as intervenções
mediáticas possam ser interpretadas por alguns como parciais ou pressionantes
do tribunal.
Mal de nós quando os tribunais, que
devem ser eles próprios garantes das liberdades sintam a sua própria liberdade
anquilosada por umas entrevistas a jornais ou umas séries de televisão que, afinal, não fazem
mais do que trazer a público versões tão parciais como as que, ao invés, sempre
se contêm na acusação.
Nesta nova era que é de informação, valerá a pena afirmar, como
Copérnico, a heresia da translacção...
Epure se muove...
25/10/1996
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