Meu Estimado António Marinho Pinto:
Permite-me que te trate assim e não te chame de bastonário.
Tenho muita dificuldade de usar essa palavra, apesar do dever de respeito à lei.
É uma palavra feia, horrível, eivada de vícios.
Gostava de te chamar Presidente, com P, por todas as razões e por mais uma que é da de que não te imagino, amanhã como um vampiro sugante do sangue de quem te suceder.
O mais grave defeito do Estatuto da OA é esse mesmo do vampirismo que suga a legitimidade dos eleitos e impede que as mudanças sejam coisas democráticas, republicanas, cívicas.
O mais grave problema da advocacia do nosso tempo não está no facto de haver muitos advogados; está no facto de não haver concorrência na igualdade de oportunidades.
Tens contradições incríveis… Usamos todos a mesma toga o que tem o mérito e o demérito de igualizar, sob os auspícios da Ordem, os virtuosos, os bêbados e os imbecis.
Há anos que defendo o fim desta farda que encobre as diferenças e que sugiro que os juízes façam o mesmo e que todos mudemos o tom de voz e passemos a ser cidadãos, pessoas normais, parte daquele Povo, em nome de quem se deveria fazer a Justiça.
A Justiça, penso eu, é (deve ser) ante de tudo um exercício de razoabilidade e de razão e não um espectáculo de ventríloquos ou mesmo, para parafrasear uma anedota da crise, um candomblé que nem sequer tem galinha preta, porque tudo se faz com caldos Knorr.
Vem tudo isto a propósito da crise, das suas circunstâncias e das suas consequências.
Sempre fui defensor de que as politicas devem racionalizar a melhoria da qualidade das prestações de serviços e que nada justifica que se imponham aos cidadãos restrições que os prejudiquem, mesmo que isso tenha como consequência a redução dos rendimentos de determinados grupos de pessoas ou empresas. Por isso mesmo sou, desde a primeira hora, um entusiasta do «Simplex», criticando-o apenas quando, em minha opinião, as boas ideias são mal executadas e alguém as manipula para satisfazer interesses menos claros.
Tudo isso apesar de ter a consciência de que o referido sistema causou rombos brutais no mercado em que intervêm os advogados e tem acopulados alguns módulos que visam, pura e simplesmente, a geração de novos negócios para o Estado, que toda a sociedade está a financiar.
A miséria está aí, a todos os cantos…
Não me refiro à corrupção, com a qual me habituei a conviver e relativamente à qual, depois de ler o último relatório da ONU sobre o desenvolvimento humano, todos temos que nos habituar a conviver.
A corrupção transformou-se numa coisa tão normal como a heroína e a cocaína (que são grandes negócios de Estado, desde a guerra do ópio). Não vale a pena combatê-las, sem prejuízo de a civilidade em que assenta o respeito por elas dever ter, como contrapartida, uma melhor realização do direito à informação.
Eu não quero combater a corrupção… Já me habituei a viver com ela… Mas acho que cada vez é mais inequívoco que «perguntar não ofende» e eu quero perguntar, mesmo que não me respondam…
O importante hoje é perguntar e deixar as perguntas penduradas, preferencialmente com um reclamo luminoso, contando os dias.
Neste tempo de globalização não há só sofrimentos; também há hedonismos. E um dos maiores é o das perguntas… sobretudo daquelas que são, por natureza, orgásmicas, porque, em princípio, não têm resposta.
Seriam horas as do tempo necessário para te falar do que emerge desta radícula.
Mas o teu tempo é precioso e o meu não o quero desperdiçar para além dos sinais necessários, vou directo ao assunto.
Como saberás sou completamente ateu… graças aos deuses, o que não significa que não seja um homem de decoro, respeitador dos mortos.
Sou incapaz de mijar numa sepultura e isso não decorre nem de medos, nem de superstições, mas de princípios e de um congénito (e incorporado) sentido do dever de respeito pelos direitos do Homem, como portador de memórias e de princípios.
Não gosto – acho démodé – esse vampirismo dos bastonários, que o são, por força da lei, para além da «morte», que escrevo entre aspas para que não haja susceptibilidades. Porque é que quem deixou de o ser continua a sê-lo?
Que há uma razão há, mas nem sequer vale a pena perder tempo a discutir qual é. Por mais ridícula que seja a eternização dos bastonários, parece-me que a devemos respeitar, quanto mais não seja em homenagem ao nosso próprio folclore.
Alguns daqueles homens que pegaram no bastão da Ordem e cujos sucessores os eternizaram em quadros a óleo, como hás-de ter um teu, não são propriamente exemplos de virtude. Mas estão lá, no salão nobre, pintados a óleo por pintores de pior ou de melhor qualidade.
Se não houvesse outra razão, só essa justificaria que o salão nobre da Ordem não fosse transformado numa espécie de peixaria chic, para usar uma alegoria da mulher do Durão Barroso que considerava o marido um pargo, ou, para espíritos mais ousados, numa espécie de bordel.
Tirem o colchão de dentro do toucado e respeitem as nossas múmias…
Isto está mau e cada um deve fazer pela vida, como melhor o entender. Mas a Ordem não pode nem desrespeitar nem as memórias dos vampiros que lhe confiaram nem os direitos dos crentes que a ela se vincularam em respeito por uma matriz indiscutível mas vinculante.
Com todos os defeitos que a matriz tenha, ela vincula-nos e garante-nos.
Vem isto, meu querido Amigo, a propósito do uso do salão nobre da Ordem para conferências comerciais que, por maior que seja a sabedoria dos conferencistas (que o é seguramente) não são mais do que isso mesmo – comerciais - como se a sabedoria passasse, de um dia para o outro, a vender-se segundo as regras com que, em tempo de crise, sempre funcionaram os botequins.
Não me chocaria se a Ordem contratasse com o Museu Histórico de Amesterdão, o uso do salão nobre para uma reposição da exposição «Amor à Venda – 400 Anos de Prostituição», atenta até a similitude das idades que transporta um certo paralelismo para as nossas profissões.
Mas choca-me profundamente que essa galeria de sábios com vocação de vampiro – que são os nossos eternos bastonários – assista à decadência da profissão, num misto de comércio, miséria e feira de vaidades, que leva uns a propagandear a banha da cobra e outros a sentir a tentação de pagar para ver as magias que a ilusão lhes cria.
Agora é a Wolters a dizer, venham, venham, senhores advogados, todos ao redondel, são só 450 €, 450 €, um salário mínimo por pessoa, para aprender os segredos da pedra filosofal, do como falar, interpretar, descobrir os inspectores das finanças… Venham todos, diz o cartaz. É na Ordem, no salão das múmias… com a bênção delas.
E como não respondemos, ligam-nos pelo telefone. E são chatos, e insistem; talvez o tal rapaz do telefone, coitado, ganhe 10% por cada bilhete que venda; sempre são 45 €…
Insultei-o, disse-lhe tudo, acho que lhe disse mesmo que ele me lembrava um chulo que há uns anos, quando alguém resolveu falar mentiras sobre a minha fortuna e dar-me como milionário, me perseguiu para me vender a mulher que o alimentava.
Se eu soubesse o nome dele, pedia-lhe desculpa…
Afinal eu não tenho razão nenhuma.
Perdi a cabeça, acho que me parou o relógio e avancei 100 anos no tempo e vi o mesmo espectáculo, a mesma feira de ilusões, debaixo do teu retrato e de uma série de gente mais nova que te sucedeu e que eu não conheço. Voltei 100 anos para trás.
Achei que era um sacrilégio e voltei para trás para te dizer isso. Os velhos são pessoas de respeito que não merecem essa coisa de os transformarem em palhaços de feira. E os novos merecem muito menos…
É um insulto que, no tempo que corre, se alugue uma cadeira para vender ilusões ao preço de um salário mínimo mensal, por umas horas de espectáculo, que só beneficiam os actores.
Abraço
Miguel Reis
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