20 julho 2006

20 de Julho de 2006

A insensibilidade não tem limites face a um positivismo tão galopante quão grotesco.
Há coisas que são evidências e contra evidências não há argumentos.
Em 1995, um lavrador do Montijo, comprou à extinta EPAC factores de produção para uma sementeira de arroz e assistência técnica à colheita.
A assistência foi muito deficiente e, quando o homem chegou ao fim da colheita, não tinha dinheiro que lhe permitisse pagar as facturas em dívida, no montante de 9.202.706$00.
A EPAC propôs uma acção pedindo o pagamento desse montante e o homem contestou e deduziu reconvenção, pedindo o pagamento de indemnização correspondente aos prejuizos que tivera.
Perdeu na primeira instância, sendo condenado a pagar os tais 9.202.706$, acrescidos de juros à taxa legal desde a data de vencimento das facturas até efectivo pagamento.
Interpôs recurso concluindo da seguinte forma:
«Deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que:
i. Condene a apelada a pagar à apelante:
1. O montante que o A. lhe pagou relativamente à segunda monda química (a monda que teve pior emenda que o soneto) da campanha de 1995, com juros à taxa legal desde a data dos respectivos pagamentos, apurando-se o valor por análise à contas do A. e da R..
2. Uma indemnização do valor de 20.005.000$00 para ressarcimento da perda de produção causada pela R. relativamente à campanha de 1996.
3. Uma indemnização de 5.000.000$00 para ressarcimento do dano causado no crédito do A. pelo preenchimento abusivo do referido cheque e sua apresentação a pagamento.
ii. Condene a apelada a devolver à apelante os dois cheques em branco que tem em seu poder;
iii. Condene a apelada como litigante de má fé em multa e indemnização a atribuir à apelante de valor não inferior a 10.000.000$00, ou 49879,79 €;
A Relação de Lisboa julgou parcialmente procedente o recurso e decidiu:
a) condenar a EPAC a pagar ao lavrador o montante de 15.547.000$00 (provimento parcial ao pedido i.2 supra);
b) condenar a EPAC a devolver ao lavrador os dois cheques em branco que tem em seu poder (provimento total do pedido ii);
c) condenar a EPAC como litigante de má fé em multa de 80 UC’s (provimento parcial ao pedido.
Apesar disso, consideraram os desembargadores da Relação que não tinha havido lide dolosa por parte da EPAC e que, portanto, havia lugar a multa mas não a indemnização.
Interpusemos recurso para o Supremo que, no essencial, confirmou a decisão da Relação, absolvendo porém o Estado, que sucedeu à EPAL, da multa por litigância de má fé.
A decisão é bonita, mas estupidamente enganosa.
O Estado foi condenado a pagar ao lavrador uma indemnização do montante de 15.547.000$00 por ser ter provado que a extinta EPAC lhe causou, em 1995, um prejuizo daquele montante.
Mas ele foi condenado a pagar ao Estado 9.202.706$00, com juros contados desde a data das facturas, o que significa que não recebe nada e ainda tem que pagar.
Perante este absurdo apresentei ao STJ um requerimento com o seguinte teor:
Exmºs Senhores Conselheiros:
FULANO, recorrente nos autos à margem identificados, vem requerer esclarecimento do douto acórdão agora notificado, o que faz nos termos do artº 669º,1 al. a) do CPC e com os fundamentos seguintes seguintes:
1. Os factos a que se referem estes autos ocorreram, no essencial, em 1996, ou seja há cerca de dez anos.
2. Consideraram as instâncias:
a. A primeira que o agora requerente não pagou à Ex-Epac o montante de 9.202.706$00, de fornecimento de sementes e adubos que aquela extinta empresa pública lhe fez;
b. A segunda instância, que a empreitada contratada pelo ora requerente com a Ex-Epac teve cumprimento defeituoso, que causou ao requerente prejuízos do montante de 15.547.000$00 naquela época.
3. Este Venerando Tribunal desconsiderou a tese da compensação expendida pelo recorrente, com os fundamentos constantes do douto acórdão.
4. Parece-nos que o STJ andou mal porque, na linha do artº 854º do Código Civil, se deveria entender que a compensação haveria de operar a partir do momento em que os créditos eram compensáveis, ou seja muito antes de o Estado ter a sua titularidade.
5. A compensação, a processar-se, sempre haveria de ser tida como um fenómeno da e na relação entre o recorrente e a Epac EP, antes da dissolução desta.
6. Admitindo que a questão suscita alguma controvérsia, propôs o recorrente uma solução subsidiária, constante da Conclusão VIII.
7. Porém, este Tribunal não se pronunciou sobre a questão equacionada a conclusão VIII, em que se pede que, subsidiariamente, na hipótese de não se acolher a tese do recorrente, se actualizasse o montante da indemnização com base no índice de preços no consumidor publicados pelo INE.
8. O texto do douto acórdão recorrido é, salvo melhor opinião, obscuro, sob pena de termos que concluir que estamos perante uma decisão iníqua, para não dizer mesmo ininteligível, à luz das regras que enformam o nosso ordenamento jurídico.
9. A lógica da obrigação de indemnizar é a da restitutio in integro, da reparação completa do dano.
10. No caso vertente, a ex-Epac forneceu sementes e adubos e contratou um serviço com o recorrente, pelo qual este haveria de pagar um determinado montante.
11. Porém, como prestou tal serviço de forma defeituosa, o tribunal condenou a Epac no pagamento de uma indemnização que, calculada segundo valores do mesmo ano dos fornecimentos, é de quase o dobro do montante da factura dos meios de produção e dos serviços por ela prestados.
12. Com esta decisão – ao menos como a lemos – o recorrente não recebe nenhuma indemnização… como ainda tem que pagar elevado montante.
13. Concretizando com maior precisão:
a. O desgraçado recorrente contratou com uma empresa pública – de que foi herdeira a Direcção Geral do Tesouro – e foi-lhe dada razão, condenando-se a sucessora no pagamento de 15.547.000$00, que é o valor dos prejuízos que conseguiram apurar-se.
b. Esse valor foi o que «faltou» para que houvesse uma colheira normal , em razão do cumprimento defeituoso da ex-Epac, no valor da colheita cujos factores de produção não pagos, no mesmo horizonte temporal, valiam 9.202.706$00.
c. O que parece decorrer deste douto acórdão é que, apesar de se reconhecer o essencial da razão do recorrente, se encontra, de forma habilidosa, um expediente para nada lhe pagar.
d. Vejamos: aos 9.202.706$00 de 15 de Novembro de 1996 correspondem hoje 19.916.092$80, se sobre eles forem calculados juros à taxa legal.
14. Ou seja, em vez de receber … o requerente terá que pagar 4.369.092$81, o que perverte completamente a ideia de justiça subjacente aos doutos ensinamentos dos dois arestos dos tribunais superiores.
15. Não queremos acreditar que este Venerando Tribunal tivesse querido proferiu decisão nesse preciso sentido, pelo que estamos convencidos de que terão os Senhores Conselheiros sido traídos pelo texto ou pela má interpretação que dele está a fazer o humilde advogado signatário.
16. Estaríamos, de facto, perante a completa perversão da ideia de Justiça – já não no plano da mera injustiça ou imoralidade de qualquer normativo, no quadro a que se refere o artº 8º,2 do Código Civil.
17. O facto seria tanto mais grave por estar em causa a relação (embora uma relação privada) entre o Estado e um cidadão e ser um órgão da soberania do Estado a adoptar uma decisão que o favorece, em termos que configurariam uma verdadeira ilegalização de um latrocínio.
18. A simples hipótese de configurar esse alto Tribunal, que nos merece o maior respeito, como o protector de um Estado Ladrão é coisa que rejeitamos em absoluto, pelo que somos levados a concluir, a contrario sendo, pela existência indiscutível de uma obscuridade que, modestamente, não conseguimos ultrapassar sem a preciosa ajuda de Vªs Exªs.
19. É óbvio que ao aceitar-se uma limitação como a que se contém no artº 853º,1, al c) com os efeitos que alcançamos ler neste acórdão, estaria este Tribunal a violar, de forma brutal, o artº 9º, al b) da Constituição, atacando uma das tarefas fundamentais do Estado que é precisamente a de garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático.
20. Não é próprio de um Estado de direito democrático o aproveitamento de um artificio legal deste tipo para inverter completamente a ordem das coisas e colocar o lesado na posição de devedor do lesante, apenas por este ter passado a ser o Estado.
21. Crê, assim, o recorrente – por ser tão absurda a solução – que estamos perante um lapso…22. Prejudicado por uma entidade agora representada pelo Estado, o recorrente viu essa entidade condenada a indemnizá-lo.
23. Mas agora é este Tribunal, na leitura que fazemos do acórdão, a dizer que… é o recorrente que tem que indemnizar quem o lesou…
24. Termos em que se requer a aclaração do douto acórdão pedindo-se a esse Tribunal que esclareça o seguinte:
a. Se o Estado, como sucessor da Ex-Epac, está obrigado a pagar ao ora requerente, com os fundamentos aduzidos no douto acórdão da Relação de Lisboa e que montante está obrigado a pagar;
b. Que montante está o requerente obrigado a pagar à DGT, como sucessora da Ex-Epac.
O Advogado
...
Veio agora a decisão, dizendo que nada há que esclarecer ou aclarar.
E chegou, entretanto, um oficio da Direcção Geral do Tesouro, a pedir o pagamento de 101.262 €, ou seja de cerca de 20.200 contos.
Claro que, apesar da sentença ser expressa, a DGT não se oferece para pagar nada. Nem o próprio Estado respeita aos tribunais que temos.

Sem comentários: